Elementos de uma Arte Flamejante
O fogo ardente gera chamas e brilho em cada coisa que que lhe é atirada para dentro.
— Marco Aurélio
Jorge Galindo apresenta, na Galeria Fernando Santos, nova série de pinturas intitulada FLAMA, numa explícita alusão a esse fogo que parece consumir, desde sempre, as suas imagens como que a partir de um poderoso mas oculto centro ígneo, que as anima e torna quase convulsivas. Fogo da paixão, da entrega, da ousadia decerto, mas também da sua capacidade de voltear sobre o abismo sem qualquer resguardo, arriscando, em cada tela nova — como nas Tauromaquias de que nos falou Michel Leiris, que as equivalia à literatura e à arte — falhar completamente ou acertar em cheio nesse imprevisível (mas todavia possível) frágil ponto em que tudo se sustenta e ganha um novo sentido.
Desde o formato das telas, enorme, que exige do corpo do Artista notável esforço físico e psíquico, necessários a enfrentar essa permanente ameaça do desequilíbrio, até ao uso das cores cruas em rápidas pinceladas — que não deixam de evocar os drippings pollockianos — ou, sobretudo, à instante presença do gesto que reencontramos sempre cada vez mais amplo, mais ousado e mais ameaçado, portanto, de falhar, tudo na verdade converge, nesta arte radical, para um assumido enfrentamento do abismo. Por isso encontramos nesse termo, FLAMA, um sentido alegórico poderoso que nos diz muito sobre o que move por dentro o notável trabalho deste Artista.
Trata-se, creio, de situar a pintura num espaço limite — quer de escala, quer de gesto, quer de força (a energeia) — em que esta enfrenta a possibilidade radical da sua própria destruição. Tal como em certas experiências musicais — de Jimmy Hendrix a Stockhausen os exemplos são múltiplos e diversos — ou do cinema contemporâneo — Godard com Weekend, Jim Jarmush com Mistery Train — o que aqui se procura é, na verdade, acercar um limite da expressão: tocar uma corda em que já reverbera a dissonância, acenar um desfazer da imagem que todavia se salva numa última faena, digamos assim, mas de que a própria pintura regressa como se ferida, ferida desse risco do acercamento da morte de que, no entanto, nasce a mais profunda afirmação de vida, de vitalidade, de energia. Trata-se, em suma, de ir retirar ao caos um princípio de ordem, mas o de uma nova ordem que não se instaura sobre qualquer outra, anterior, mesmo se com ela pode dialogar.
Escrevi, noutro lugar, sobre a pintura de Jorge Galindo, que ela instaura um clima poético próximo desse que o grande poeta Federico Garcia Lorca designou de el duende. Como referi, “numa célebre conferência, realizada em meados da década de trinta, Juego y Teoria del Duende, Lorca exprimia, nos seguintes termos, a sua concepção: ‘Todo hombre, todo artista llámese Nietzsche o Cézanne, cada escala que sube en la torre de su perfección es a costa de la lucha que sostiene con su duende, no con un ángel, como se ha dicho, ni con su musa. Es preciso hacer esa distinción, fundamental para la raíz de la obra1’. A obra de Galindo, a meu ver é uma afirmação exemplar da premência deste assalto de el duende — génio contraditório e inspirador, de natureza misteriosa, quase diabólica — que está presente, para Lorca, em toda a forma de criação espanhola, seja esta musical ou teatral, artística ou poética (…) É precisamente esta capacidade de aproximar a criação de um sentido trágico da morte, de que tão bem falou Lorca, fazendo-a ser temperada como se pela intensidade de uma espada afiada que se suspende sobre ela, o que a arte de Galindo nos propõe viver como experiência, quando diante dela.”
Ora nestas novas flores selvagens, que uma vez mais ampliam as que apareciam já nas séries anteriores ao deixar cada vez mais fluentes e mesmo cada vez mais abstractos os gestos, a presença das colagens, as expressões da cor e do “ataque” do corpo na sua luta com a tela, o Artista arrisca levar mais longe este processo de possessão ou de transe em que a figura fantasmática de el duende reaparece. E assim, para nos relembrar de como cada gesto humano, por radical que nos pareça, reencena de facto essa luta antiquíssima do humano com o nada, ou com o que chamamos também de caos primordial, de que surgiu, para lhe impor o advento de uma ordem, qualquer ela seja, uma ordem que nasce precisamente desse risco e da descoberta, a bem dizer processual, que se manifesta graças ao encontro do acto de criação em que o Artista procura chegar à sua individuação.
Galindo sugere-nos, nesta exposição, a partir de uma série de pequenas obras executadas sobre livros abertos, enigmaticamente pousados sobre suportes desses normalmente usados para apresentar pautas musicais, que por detrás destas obras reside uma cifra, que de certo modo inscreve, mesmo se de um modo secreto, uma subtil relação com a música. Como se fossem partituras dos quadros maiores, estes livros, porém, assinalam uma outra convergência que importa aqui pensar.
Eles acenam a possibilidade de uma escrita. Uma escrita primitiva, à maneira dessa que Henri Michaux praticou há quase setenta anos, de referência automatista, em que o gesto povoa o espaço da sua inscrição de signos porventura arbitrários, ou improvisados, em que, um pouco à imagem do que ocorre com a improvisação musical, a mão que pinta é atravessada por uma pura vibração energética, na manifestação de uma espécie de transe cuja significação se desconhece mas graças ao qual se revela alguma coisa.
Formas poéticas, portanto, elas pressupõem um entendimento do acto de criar como obedecendo a uma pura imanência, como acontecimento, como libertação do sentido e manifestação de um desejo de que através dele possa manifestar-se o surgimento de um outro sentido ainda oculto, ou ainda e sempre por revelar. Trata-se, em todo o caso, de gerar um espaço de escrita, já não na busca de um significado mas antes do próprio significante que, no caso do Artista, reside em tornar visível o gesto e o impulso para o gesto que ocorre numa dimensão anterior (ou posterior) à do sentido e da forma acabada. Tudo se resume, creio bem, em gerar o que seria da ordem de uma escrita cujo significado todavia nos permanece oculto, mas em que habita já uma raiz de linguagem.
A permanência nesse espaço prévio ao do sentido, porém, introduz um elemento de revelação (de el duende justamente) no qual permanece oculta, porém, a própria essência do segredo que é requerido pelo acto de criação e que deve acontecer sem que se perca o seu vínculo ao que é de ordem inconsciente. É justamente porque permanece resguardado num espaço da ordem do intervalo — o intervalo entre significado e significante, entre sentido e nada, entre o visível e o invisível — que o fazer da obra permanece secreto e obediente apenas à necessidade de, através de uma arte flamejante, próxima desse nascimento do fogo por fricção, levar sempre mais longe a sua procura do que seria a revelação de uma luz extrema.
Tal é o sentido dessa FLAMA — o título que que nomeia esta nova exposição — esse acontecimento de que nasce a luz e o brilho e que se manifesta entre as trevas como um puro acontecer do que de repente ilumina, de novo sentido, o informe caótico de que parece ter partido para que, graças a ele, possa renascer a própria criação.
Bernardo Pinto de Almeida
(Setembro 2024)
1 – Cf. Marco Antonio Ossa Martinez, Ángel Musa Y Duende: Federico García Lorca y la música, ed Universidad Castilla La Mancha, 2015.
O título deste projecto foi inspirado na ideia de Iggy Pop para a criação das letras dos Stooges1. Ocorreu-me durante a produção de um conjunto de fotografias de grande formato, tiradas no interior
de uma rulote que servia de morada a um músico. Nesse espaço exíguo este ensaiava músicas do tempo em que tocava bateria em bandas de covers.
Apresentei este projecto pela primeira vez na exposição colectiva We Want Electricity, na Galeria Pedro Oliveira, em 20212. Para além dessas fotografias a cores, incluí um conjunto de imagens mais antigas a preto-e-branco e também uma pequena instalação onde, numa mesa com tampo de vidro, expus uma fotografia que tirei ao Joe Strummer nos bastidores de um concerto dos Clash, em 1981, a baqueta partida do baterista Topper Headon e uma fotografia de um soldado em Cabinda a tocar guitarra, sentado no amplificador do próprio instrumento, pousada numa das páginas do livro Nixon e Caetano: Promessas e Abandono, acompanhada, na página oposta, por duas imagens: uma do Capitão Salgueiro Maia e outra do Major Otelo Saraiva de Carvalho.
Na associação dessas fotografias e desses objectos revejo o tempo em que se cruzaram as narrativas políticas da Revolução de Abril de 1974 e o fim da Guerra Colonial, por um lado, e, por outro, o imaginário da estrada da Beat Generation e a poética pós-punk, utopia – por não querer nem governo nem Estado – que a Liberdade tornava agora acessível a uma juventude inconformada com o passado ligado a uma sociedade autoritária e ao preconceito social de que nos fala o filme Verão Escaldante.
Ainda longe de imaginar a relação que este projecto teria com o filme de Spike Lee, estabeleci no início da década de 1990 uma colaboração com transexuais e jovens com Sida para realizar uma série de retratos de estúdio que esta série igualmente documenta. O confronto entre o disco sound e o movimento punk, a transexualidade e o aparecimento do síndroma de Kaposi testemunha os vícios de uma geração posterior ao tempo em que o gesto de resistência assumia uma importância incomparável para afirmar a suspeita de existir, teimando no improviso e contornando a censura na clandestinidade3.
Luís Palma
1 “Quando comecei a escrever canções para a nossa banda, pensei ‘este é o caminho’. Tentar não ultrapassar 25 palavras diferentes ou menos. Não me via como Bob Dylan. Tentar fazer a coisa mesmo curta. Desse modo, nada haverá a apontar.” Documentário Gimme Danger, do realizador Jim Jarmuch, EUA, 2016.
2 A exposição, com curadoria de Susana Lourenço Marques, ocorreu no âmbito da programação Situação 21.
3 Susana Lourenço Marques, folha de sala da exposição We Want Electricity, Porto: Galeria Pedro Oliveira, 2021.
Carta de Veneza
Caro Avelino,
Escrevo-te de Veneza, cidade memória por excelência. Aqui o turista já não é o do grand tour; quando esses vinham beber na arte e na cultura local, o grande intuito era beber num presente-passado, a ruína e a decadência como indícios civilizacionais de um porvir mais esclarecido. Agora só querem a epiderme: recantos e reconhecimentos sucessivos como pano de fundo para carnes demasiado expostas na vulgaridade tatuada. Gostaria de passear nas ruas estreitas e cruzar-me com Lord Byron absorto nos seus pensamentos diarísticos. Hoje em dias temos de contornar indivíduos ou grupos em sessões de selfies contínuas.
A pornográfica digitalização do ser.
As pinturas que agora apresentas, trazem-me à memória o nosso encontro há trinta anos. Altura em que o teu diálogo com Celan passou a ser nosso. A memória na pintura, assunto sempre teu, é agora a memória da pintura. Como se de um silencioso e persistente sonho do qual não sabemos como e quando sair se tratasse.
A Ucrânia no poema de Celan, que escolheste para acompanhar as obras, arde lentamente às mãos de um cowboy ressabiado. Em Gaza o horror sofrido por um povo é manipulado por abjetos sujeitos em fuga para a frente quando o poder lhes parece escapar.
Tudo digital. Tudo passa em écrans de última tecnologia que nos mantêm em permanente torpor inoperante por oposição ao sobressalto prolífico.
A tua pintura é memória descarnada nas suas magníficas velaturas. Uma vida inteira de chamamento a uma razão complexa. A natureza humana exposta nos seus momentos mais sombrios.
Não é estridente: é, sim, um perpétuo sussurro que persiste no espaço da decência.
Do teu amigo Miguel.
(Miguel Von Hafe Pérez, 2024)