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Rui Sanches – ‘Suite Alentejana’

21.09 26.10.2013
Galeria Fernando Santos
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Rui Sanches
Suite Alentejana – pintura
21.09 – 26.10.2013

Rui Sanches – Suite Alentejana

As Pinturas do Pintor Rui Sanches
Por Bernardo Pinto de Almeida

Julho 2013

‘Comecemos por uma simples afirmação: não deverá surpreender-nos que um artista vindo do campo da escultura, e porventura um daqueles que com maior destaque abriu um campo próprio e reconhecível como tal à escultura em Portugal nas últimas décadas do século XX possa visitar-nos, agora, com os instrumentos da pintura.
Mas imediatamente assumindo também que, se tal não nos deve surpreender no plano dos factos, para que aqui procuraremos explicação razoável, tal nos deve outrossim surpreender no plano dos seus resultados, em si mesmo surpreendentes, e tanto mais quanto poderia parecer diante destes, aos olhos de um espectador que não lhe conhecesse o percurso, face ao seu conseguimento próprio e consistente, que se trata de um sólido e experiente pintor, com longa obra realizada nesse campo.

Explico-me então. Dada a natureza própria do seu programa plástico, a obra de Rui Sanches realizada no campo da escultura colocou sempre, a partir de si mesma, um corpo de questões que importa aqui, ainda que brevemente, situar. Começando por lembrar que a noção de ‘campo expandido’, através da qual Rosalind Krauss quis entender o alargamento do campo escultórico no período do chamado Modernismo tardio, integrou as preocupações do artista e o levou a fugir sempre de um campo escultórico tradicional, por assim dizer, ou do que se definiria como próximo de certa convencionalidade da ‘imagem da escultura’ moderna, para o levar antes por campos experimentais em que, sem sair do próprio da escultura lhe alargou a compreensão através da elaboração de sólido e pertinente programa plástico, ao mesmo tempo lírico e construtivo, que permitiu produzir uma obra coesa que jamais se afastou dos seus pressupostos.

O estabelecimento, disciplinarmente assumido pelo artista, de relações espaciais conseguidas através da colocação modular e em diálogo de elementos geométricos e biomórficos diversos, por um lado, e por outro lado o uso pouco convencional de materiais também eles diversos — a madeira contraplacada, o gesso, os metais, a água, etc., — como ainda, e de outro modo, a referência desde o início encontrada no desenvolvimento da sua obra a motivos de composição procurados do lado da pintura (como o fez entre outros com uma célebre obra de David, mas também com outras da grande tradição) permitiram que a escultura de Rui Sanches desde cedo ganhasse uma dimensão exemplar e profundamente original no espaço conceptual e formal do que poderíamos designar como o do chamado ‘pós-minimalismo’, campo conceptual e formal em que evidentemente a sua obra começou por afirmar-se e como não poderia deixar de ser, dado o período em que se iniciou em finais da década de setenta do século XX.

O que significa lembrar que se essa obra tinha uma consciência profunda e inicialmente muito nítida das implicações que a herança de Donald Judd em particular tinha trazido para a escultura, isso não a limitou a ficar presa ao encontro de meras elaborações mais ou menos repetitivas ou académicas desse mesmo receituário, nem o cingiu a um regresso reiterativo e visualmente fatigante sobre o ‘ready-made’, como aconteceu com tantos outros, como antes lhe permitiu procurar do lado de uma outra exploração do campo escultórico (que acolhia essa mesma herança mas problematizando-a) novas e mais originais soluções. Como de resto, e embora de outro modo, aconteceu com outro grande escultor europeu, seu e nosso contemporâneo, que a vários títulos tem relações com este mesmo campo: Tony Cragg. Ou seja, apesar de ter compreendido e integrado o que historicamente decorria, no plano conceptual como no formal, da ruptura trazida pelo ‘acto minimalista’, Rui Sanches foi capaz de reinventar o campo escultórico através de uma reelaboração de pistas perdidas que trouxeram grande originalidade ao seu trabalho.

Entre estas, e como referi, a relação com a pintura e, em particular com certas formas encontradas, no plano compositivo, com grandes referências visuais do passado, contribuiram para lhe dar um cunho singular e mesmo em certa medida irónico. Mas essa relação não se fez meramente no plano das referências visuais que transportavam, e por assim dizer, a escultura para fora da escultura. Elas fizeram-se também através da capacidade de integrar, no próprio fazer dos seus objectos escultóricos, formas provenientes da bi-dimensionalidade que pertencia à pintura. Ou seja, Sanches introduziu em muitas das suas obras elaborações formais que permitiam ao espectador percepcionar a forma escultórica a partir de ângulos que convencionalmente não eram tanto do campo da escultura como antes da instalação ou da pintura. Recorrendo frequentemente a planos muito próximos do solo que permitiam ver a escultura desde cima, como se em vista aérea, ou a obras de parede, o escultor soube introduzir ângulos e pontos de vista que referenciavam subtilmente o universo visual da pintura, sem jamais por isso trazer o pictórico para o interior da escultura.

Esse movimento inteligente de alargamento do campo, passou nomeadamente pelo progressivo recurso a formas trazidas do desenho, como o recorte sobreposto de figuras, ou mesmo importadas, por estranho que tal possa parecer, dos processos da ‘collage’ — como ocorreu no uso indistinto de materiais secos (a madeira, o metal) e de materiais húmidos (o gesso, a água) —, e pela sua integração no fazer íntimo da escultura que apropriava desse modo novas possibilidades perceptivas.

Por estas razões, a obra de Rui Sanches, pertencendo embora de pleno direito à escultura, ao apropriar procedimentos importados de outras artes apenas enriqueceu o campo em que se fez, garantindo desse modo a sua transformação. Assim ocorre sempre que uma dada forma de expressão ganha uma dimensão transformativa: é pela apropriação, e consequente abandono de um purismo estéril que acede a outras e renovadas possibilidades.

Em certa medida e considerando o campo da escultura contemporânea, o melhor do chamado pós-Minimalismo (penso em autores como Sanches ou Cragg, justamente os aparentando por esse lado) ocorreu por aí onde o que se tinha alavancado na forma pura pôde, por regressar sobre a impureza sem todavia perder a disciplina, ganhar uma dimensão transformativa.

Agora porém o artista dá um novo salto em frente, em direcção ao desconhecido, que é por onde a arte deve avançar, e por onde segue quando são os artistas e não as instituições que ditam o seu destino, e projecta-se no campo até agora intocado da pintura. É certo que Sanches realizara já algumas notáveis séries de desenhos. Mas a intervenção da cor e, sobretudo, dos espaços próprios da pintura, abrem possibilidades até agora impensadas e mesmo impensáveis.

Passando da tri para a bidimensionalidade, das matérias para as cores, do rugoso e áspero das matérias para a lisura delicada das telas, da presença firme dos sólidos para a liquidez das tintas, o artista mede-se com uma outra e nova dimensão do seu experimentar. E fá-lo com uma coerência surpreendente, de quem atravessasse já há muito esses caminhos. Porquê? precisamente porque arrisca e porque não hesita em afrontar um território em que não tem ainda a experiência do domínio e isso o deixa diante da pura experimentação.

Essa é porventura a grande surpresa desta série de pinturas, impressionante na quantidade tanto quanto na qualidade, que Sanches traz para um espaço em que ninguém esperou esse gesto vindo das suas mãos. Mas onde no entanto o sentimos guiado por alguns dados que importa compreender. Antes do mais, pela sua inteligência de artista. Ele foi sempre, e como para trás procurei demonstrar, um artista particularmente inteligente, nomeadamente quando soube contornar o que parecia ser (e como de facto para muitos foi) um beco sem saída no campo da escultura depois da radicalização (do ‘linguistic turn’) implicado pela teoria de Judd. Agora também é dessa inteligência visual, dessa grande cultura que tem das formas e da história, que o artista se socorre.

Mas fá-lo, e isso sim é surpreendente, através de uma intuição que não hesita em derrotar todo o acesso que lhe chegaria por via de uma estrita racionalidade a que a sua mente sempre disciplinada poderia sucumbir. O que traz a este conjunto de pinturas uma frescura inesperada que todavia não renega o rigor construtivo que é marca própria do seu trabalho como artista.

Reencontramos as geometrias, por vezes reduzidas a simples e finíssimas linhas que percorrem matricialmente o campo pictórico, como antes se sentiam subtilmente compondo a matriz da escultura. Mas encanta-nos a cor, a capacidade de ousar, entre dois espaços, a mancha, a dissolução das formas, o abandono dessa pura disciplina construtiva de que parte em benefício de um voo mais alto e menos ancorado em tudo quanto já sabe por experiência e cultura dominar. E isso faz um artista: a capacidade de indisciplinar até ao limite possível os próprios pressupostos de que parte, introduzindo, pela via do sensível, um princípio de dúvida que desfaz toda a tentação racional.

Sanches é um esteta, um artista culto, que conhece profundamente a história da arte, e as suas inflexões. Caminha assim por dentro dela, ao acaso do seu próprio movimento desejante, apoiado apenas na confiança que tem em que esse conhecimento não o abandone no momento do salto, e que essa sólida cultura o ajude, mesmo quando fecha os olhos ao que sabe, a não fazer as escolhas que a simples convenção pediria. E surpreende-se a si mesmo, e a nós também, porque nesse território em que antes não entrara, o da pintura, vai encontrar uma capacidade de indisciplina que a escultura já não lhe proporcionava. No movimento do gesto, na ascenção da cor, na presença subtil das matérias e na construção dos espaços, ou simplesmente movendo-se entre todos estes campos, Rui Sanches reinventa-se como artista. A sua prodigiosa memória da ‘coisa da arte’ guia-o, tal como antes o fizera na escultura. E a travessia súbita entre duas formas que poderiam assim ter perdido entre si o eixo comunicante, faz-se pelo recurso a uma solução que outro pintor, antes, já encontrara, mas em contexto diverso. E com liberdade que surpreende.

A história da arte (e em particular os espaços do Neo-clássico e do Maneirismo, de que o artista secretamente sempre se sentiu próximo no plano dos interesses visuais) é constantemente convocada, nesse sentido em que Eliot explicava que toda a verdadeira invenção poética começa por se ancorar num sólido diálogo com a própria tradição da poesia. Mas também com a arte mais recente se sentem diálogos. Da pintura portuguesa recente poderíamos aqui, por surpreendente que isso nos pareça, encontrar ecos de Bravo, de Lapa e mesmo do que foi mestre de ambos, António Areal. E do contexto americano, que igualmente refere, e profundamente conhece, as relaçções com certo expressionismo abstracto, mais o de Still ou Newman do que o de Pollock, convocam-se diante do espanto do olhar e demonstram que apesar da sua disciplina construtiva há uma acentuação lírica que move o artista a um nível mais profundo. E de repente tudo isso é atravessado por soluções construtivas que não dispensam ter compreendido as formas compósitas de Stella ou, até, as de Rauschenberg.

E a sua pintura, porque é disso que se trata sem qualquer medida menor na comparação, e quando já não seria de esperar que tanta surpresa viesse, ergue-se sem medo nem hesitação, com uma mestria e elegância surpreendentes, e  sobretudo com um sentido da delicadeza que é tocante, que não procura seduzir mas que seduz, que não se refugia numa modesta forma mas que é humilde, que não aspira a ser espantosa mas que espanta.

Isso é o que distingue um artista: a sua capacidade de espantar. Espantar tomando-se o termo no seu duplo sentido. O de causar o espanto e o de afugentar o que o vem interromper no seu programa claro. A forma vai-se decretando por si, mais segura ou mais contemplativa, e desenha-se num movimento que vai para lá do visível. Faz-se de memórias, de experiência, de necessidade. E se as três dimensões não se sentem pulsar não chega a existir acto de arte. Faz-se de espaço, tempo e matéria e tudo isso insistintamente ocorre pelo intervalo das formas que são os acessos pelos quais se dá a ver.

Tudo isso está presente aqui. Nas pinturas do pintor Rui Sanches, que nos surpreendem e desafiam a repensar tudo outra vez.’

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