Carta de Veneza
Caro Avelino,
Escrevo-te de Veneza, cidade memória por excelência. Aqui o turista já não é o do grand tour; quando esses vinham beber na arte e na cultura local, o grande intuito era beber num presente-passado, a ruína e a decadência como indícios civilizacionais de um porvir mais esclarecido. Agora só querem a epiderme: recantos e reconhecimentos sucessivos como pano de fundo para carnes demasiado expostas na vulgaridade tatuada. Gostaria de passear nas ruas estreitas e cruzar-me com Lord Byron absorto nos seus pensamentos diarísticos. Hoje em dias temos de contornar indivíduos ou grupos em sessões de selfies contínuas.
A pornográfica digitalização do ser.
As pinturas que agora apresentas, trazem-me à memória o nosso encontro há trinta anos. Altura em que o teu diálogo com Celan passou a ser nosso. A memória na pintura, assunto sempre teu, é agora a memória da pintura. Como se de um silencioso e persistente sonho do qual não sabemos como e quando sair se tratasse.
A Ucrânia no poema de Celan, que escolheste para acompanhar as obras, arde lentamente às mãos de um cowboy ressabiado. Em Gaza o horror sofrido por um povo é manipulado por abjetos sujeitos em fuga para a frente quando o poder lhes parece escapar.
Tudo digital. Tudo passa em écrans de última tecnologia que nos mantêm em permanente torpor inoperante por oposição ao sobressalto prolífico.
A tua pintura é memória descarnada nas suas magníficas velaturas. Uma vida inteira de chamamento a uma razão complexa. A natureza humana exposta nos seus momentos mais sombrios.
Não é estridente: é, sim, um perpétuo sussurro que persiste no espaço da decência.
Do teu amigo Miguel.
(Miguel Von Hafe Pérez, 2024)