Projecto e Fuga.
Esta exposição em vários capítulos de Cristina Massena é, na minha leitura, uma construção mediada por duas invocações ou duas predisposições da artista: pensar sobre a memória de um lugar e sentir a pulsão do acto e do gesto.
O título da exposição, “Fundação – Fuga”, estabelece desde logo um binómio irreversível na ordem da sua sucessão no tempo. A fundação está no acto de fundar, nas matrizes, nos fundamentos, nos pensamentos ou nos alicerces, caso quisermos ampliar as interpretações numa analogia aos métodos de construção, entre outras variações possíveis. A fuga é movimento, acção, disrupção, escapar por entre os outros num território material ou imaginário. Mas pode ser também associada ao ponto de fuga na geometria, e pode ser uma fuga, ou cesura, num determinado corpo que perde a sua coesão. Pode também ser, e é, uma forma específica de composição musical que conheceu o seu apogeu no período Barroco, um estilo próximo da artista.
Estas breves notas sobre o título, que é tema e simultaneamente um movimento reflexivo sobre si mesmo, radicam na ideia de fuga pautada por diversos significados e sentidos, memórias, inscrições fonéticas, gestuais, sonoras, materiais, métodos e formas de construção, todas parte da essência conceptual e poética da artista (que tem formação em arquitectura). Esta relação analítica e ao mesmo tempo criadora está estreitamente ligada a uma ideia de espaço, e assim ao corpo, desenvolvendo uma vivência dialéctica entre esse corpo que procura um gesto fundador no espaço da exposição e o lugar da memória em devir, que parece ser um desejo ou uma utopia. Numa passagem de um texto sobre uma exposição de Cristina Massena em 2020, Nuno Grande coloca a relação, tantas vezes recíproca, entre as práticas e reflexões da arte e aquelas outras, por vezes utópicas, que, pertencendo à arquitectura, se encontram no correlato da vida que ocorre no espaço e no tempo, situado na casa como arquétipo do lugar para a intimidade do corpo no anonimato do mapa de um outro espaço, mundano e complexo: “Muitas dessas utopias ou distopias urbanas do século XX se perderam na história da arquitectura, mas sempre ressurgem, uma e outra vez, no imaginário da arte contemporânea, como gestos críticos ancoradores no presente.”[1] Esta relação com uma casa específica não é evidente nas obras que compõem as séries, ou os capítulos, como referi inicialmente. Contudo, persiste uma lógica de construção e transformação do espaço da galeria em módulos que associamos por um lado a elementos de arquitectura e por outro a uma geografia de memórias, afectos e relações. Aliás, uma das séries expostas tem como título “Relações”, ou Relations. Como exemplo, voltando ao início da exposição, temos uma obra de assinalável dimensão da série Path ou “Percurso”, uma estrutura em grelha pensada para a sala/montra da galeria que estabelece uma relação entre dentro e fora, entre público e privado, que é o inverso da última obra da exposição, instalada na sala exactamente oposta à montra e intitulada Escape, ou seja, fuga. Esta instalação, composta por diversos elementos construídos em dois tipos de perfis metálicos, está contida dentro de uma sala fechada e sugere ao espectador um ambiente de ruptura, qualquer coisa inacabada ou, no limite, uma espécie de ruína. Em contraponto, ainda nesta série, temos “Fuga”, um desenho que rememora a poesia visual, entre a colagem e a assemblage, agregando pautas e notas musicais, parte de uma instalação com som que a artista, com instrução musical, realiza com o seu irmão Rui Massena, maestro e compositor. Esta colaboração faz-nos regressar à metodologia dialógica inscrita neste projecto, como se se tratasse sempre de um diálogo. Este binómio do meu enunciado oferece talvez uma possibilidade de leitura para duas esculturas, da série “Aceitação”, ou Acceptance. São duas mãos: uma mão direita fechada e uma outra mão direita aberta e provavelmente disponível para dar ou receber. São como dois sujeitos, indício de dois corpos e de duas formas de sentir, duas memórias esculpidas como se fossem talhadas pelo cinzel de mestres clássicos. Neste sentido, a criação artística de Cristina Massena é transversal a diversos meios de produção e execução, aos materiais e, essencialmente, a um jogo semântico que radica no conhecimento de formas de criar e de fazer que convocam a memória da construção, aqui como escultura, e das artes decorativas, transformadas em textura e relevo de invulgar plasticidade.
Massena propõe-nos uma simbiose poética e sensível que resgata uma aura emocional, até mesmo auto-referencial, mas mantendo o rigor austero da medida e da proporção presente nas diversas esculturas, com uma proximidade à escala humana. Os relevos são como fragmentos de murais ou pinturas monocromas de grandes dimensões, marcadas por uma moldura e vidro que, seleccionando uma parte da imagem a reflecte, reclamando assim a relação de quem estiver na sua presença. Uma outra obra, em metal pintado de branco, é composta por dois elementos ligados por um eixo, semelhante a uma maqueta tridimensional de um esboço de uma casa com uma execução muito depurada, e um poema. Esse poema, manuscrito, devolve-nos a palavra, tão presente nesta exposição: os seus primeiros versos dizem-nos o seguinte:
“paisagens interiores
casas inabitáveis
gaiolas disfarçadas”
(…)
Este projecto é uma exposição em quatro capítulos, ou quatro actos, em fuga. Ou ainda um desejo, uma hesitação para a fuga, como por exemplo em Bresson, no seu filme Fugiu um Condenado à Morte[2]. Uma visão do imaginário faz parte do trabalho de pesquisa da artista, por entre o seu mapa de referências e de afectos.
João Silvério
Curador
[1] Cf. Nuno Grande, “Cristina Massena Unclosed”, Janeiro de 2020.
[2] Título original: Un condamné à mort s’est échappé ou Le vent souffle où il veut, Robert Bresson, 1956.