A história como metafísica ou o tempo superado
Uma só rosa no meio do inferno é o paraíso inteiro
Eduardo Lourenço, Da Poesia (Tempo e Poesia, Obras Completas vol. III – 2016)
O tempo, como tão bem explicou Ingeborg Bachman, está a prazo, enquadra-se dentro de si. Sabemos o que é mas, se nos perguntarem, falharemos a resposta, não saberemos designá-lo, conforme confessava desconsoladamente Santo Agostinho. Proust pressentiu o agridoce aroma do tempo, transformou-o em paixão, morte e literatura. E Bergson suspeitava que, todavia, o tempo subjectivo raramente acompanha a progressão cronológica do tempo objetivo, isto é, externo à nossa própria percepção sensível. O presente é todo o seu passado vislumbrando sombriamente uma nostálgica ideia de futuro. O Dasein de Heidegger é o ser que supera a morte porque atravessa as chamas imemoriais do tempo. Cronos dança e agita-se sem par. No fundo, é um caos calmo à espera de resolução.
A obra que agora Filipe Marques (Vila do Conde, n. 1976) apresenta na galeria Fernando Santos, no Porto, entende-se como um tríptico, uma vez que prolonga A Carne que os Guindastes Suspendem (espaço MIRA, 2015) e Art Stabs Power (trabalho apresentado no âmbito do Bermondsey Art Project, em Londres), que partilham matérias, formas e ideias afins. São os grandes murais que inscrevem os principais movimentos da história da modernidade para a pensar à luz da sua memória mesma, algo para iluminar os passos da nossa existência e dos nossos rotundos fracassos.
Creio poder dizer que o trabalho de Filipe Marques, particularmente e no seu todo, vai ao limite derradeiro das últimas consequências. Não há lugar a contemplações ou a meras tentativas visuais. A ornamentação é desprovida de uma função. A escala monumental não se torna um capricho, mas uma necessidade de narrar, de desdobrar e dissecar a dialéctica e os actores que personificam o espírito da história universal. E, entre a poesia, a filosofia e a música (talvez esta última de superlativa importância) descubro, na obra de Filipe Marques, a proeminência das vozes que ecoam, designadamente, de um Hegel, um Wittgenstein, um W. Benjamin, um Celan ou um Schönberg.
A imagem é já a impossibilidade ontológica de revelar o real. É, em certa medida, a sua angústia maior. Mas as imagens que o artista utiliza no contexto desta exposição representam (e nesta palavra há todo um equívoco) o seu contrário, isto é, uma imagem depois da imagem, uma história que a ninguém restou contar, uma espécie de grau zero dessa realidade inapreensível. Talvez seja o olhar de um Ser supremo, aquele que a nós temos acesso, uma perspectiva única e diria até herética (e apenas a técnica pode arrogar-se ao título de suplantar o absoluto) de contemplar o lugar da ruína, a sua mais total devastação, a harmonia do nada. E é esse niilismo essencial, simultaneamente destruidor e redentor, a grande tessitura para a compreensão do magno labirinto que envolve o ser. A questão existencial irrompe, aqui, como o mar gelado da razão que tanto inundou os pensamentos profanos da prosa de Kafka. Existir é ir durando no tempo, carregar uma dor e uma cruz desprovidas do prazer de as dedicar à totalidade do sagrado. O homem cumpre-se, mas a partir de si e não através de uma quimera que projectou no grande arquitecto do universo, como defendiam os iluministas. A liberdade é o presente envenenado dos deuses, um facho e um fardo, um deserto imenso no qual a solidão deixa as suas pegadas sonoras.
Assim, encaramos a transição para a pós-história, a sua descontinuidade serpenteante num tempo teleológico (subordinado às acções dos fins) e já não teológico (porque Deus morrera ou, no limite, se afastara daquilo que de mais insondável habita a alma humana). Mas a história acabou porventura? Estas imagens mostram, mais do que um aparente cenário de guerra, as vicissitudes do homem lutando contra si mesmo, sozinho, desenraizado do mundo e da natureza. A contradição que ditará o fim dos tempos, a auto-destruição eminente, a superação necessária do tempo que organiza convencionalmente o alpha e o ómega do nosso ser pensante. Ouvimos Schnittke a circular pelo espaço, como se fosse a única música possível depois do caos. Após a morte auto-consentida, digamos mesmo o suicídio, que Albert Camus identificara, em O Mito de Sísifo (1942), como o nevrálgico problema da filosofia.
Regressamos ao início da história. Morrer será essa incompreensível experiência. Mordemos a cauda da serpente que enlaça o destino e a natural tragédia benevolente de onde nascemos e para onde voltamos. A história assemelha-se à imagem de uma metafísica, essa espécie de figura tutelar de todas as musas criadoras. Não será com certeza por acaso. Estas são imagens que transcendem o seu próprio registo. Olhá-las significa alcançar a posição do demiurgo primordial. Deste inferno nascerá a rosa, símbolo do belo diante do catastrófico dessincronizado. Ou seja, sem regra mas premeditado. A obra de Filipe Marques é esta relação com a vertigem, o abismo, o fantasmagórico e o inquietante, uma travessia indizível pelas agitadas águas de um pensamento múltiplo e voraz. É um convite à submersão. A história pede que não nos afoguemos no seu rio. Ulisses sempre voltará a Ítaca.
Pedro Marques Pinto, Dezembro de 2016
MÃOS NO SILÊNCIO
No silêncio sem me fazer ouvir.
Apertá-lo perfura entre os dedos dilatados
A ouvir o que não digo,
Quando digo gritos na minha cabeça que só eu ouço sem chorar dizer.
A esfolar na boca gritos como um romper silêncio
Ora em choro por choro assim em choro ainda agora chorei isso.
Neste dilúvio de gritos-imagem que me rasga dia inteiro mais meio.
Assomos de escombros
Quando a luz amarga do dia findar arrebatada
Tactaremos a par sob a mortalidade e a miséria, e nossos rostos não sublevarão trocas de pele
Apenas beijos e palavras altivas e harmoniosamente infinitas.
Comecei a olhar para os descarnados livros que deixava revestindo-a depois de morta.
Primeiro ela depois ela. não deixavam muito.
Tal como onde se forma o sangue a Im morreu aprisonada, sem que eu sequer suspeitasse
E não deixou muito. Talvez dizer muito. atenuando o crocitar dos corvos.
Como quando se morre sem nada e sem memória e os poemas passeiam no interior do fosso da orquestra como
Numa qualquer visita à Grosse Hamburger Strasse se tratasse.
Como se confundisse no interior dos meus ossos e como fosse ali haver poesia.
Onde hurdidos poros me sopram a Tannhauser
Se isto tudo é nada quase nada.
Não me recordo do sangue chover assim como um apedrejar ante tal gesto coleante
Mas recordo meu esqueleto fazer parte daquele jardim
Não me pergunte como nem porquê. a engolir uma saliva consanguinária,
Por um momento não adicione nem mais um sentimento à escuridão.
Não olhe muito para o início da esperança, não vale a pena…
Volte-se para a parede sem inteiramente a abraçar
E vamos passar placidamente nos nossos pulsos uma lâmina como estranhamento
O nosso transpiro que cada vez mais desponta.
Não toldemos mais os olhos com sucessivas braçadas,
Para que as nostalgicas víceras deles se cubram em memória decapitada que
Emprestam casa onde tudo lhes pese no escroto como fim consecutivo…O irromper a carne vazia?!
O que me desprendia muito incomensurável prazer tinha de o fazer sentir
A uma insidiosa plateia.
E a Im?!
A inusitada longícua aragem sem se perder nos cospe na boca
E não se desfaz em domínios matemáticos que revolteiam na natureza?!
Ela congrega-se connosco, como todos os sinos se congregam num vazio etéreo.
A cisplatina continua a recolher a dor prenhe do meu sangue.
Tão desmesurados os mortos agarraram-se a mim. Arqueiam-me para a alcantilada morte
Mas nenhuma seta me consegue nomear. Nem a mim.
Onde não estava, como um eco entre ecos.
Não digo: isso foi ontem. Sem préstimo. Desatino. Quase inebriante.
Desatino que é verdade da loucura é a razão. Ou melhor, quase-razão.
E o arrebatamento incorpóreo! que arrebatamento? Arrebatamento de. Qual? Quais pois ambos.
Um dia pergunto penoso. Sobre o transbordar. Que transbordar no espelho?
Agredir ou acariciar – de ambos no espelho. A pele. Para o transbordar anónimo vazio do espelho de ambos.
Sou o seu único transpiro que poisa no absurdo resinoso.
Absorto transpiro o único sem transpiro. Espacejando quem senão eu o seu transpiro. Quem.
A pele que pende para dentro de si própria até o inerte transpiro. Até o medo.
É um todo medo interpor exsudação.
Cúmplices no mesmo escombro medo disforme não desertara.
Qual era? Qual? Bem-vindo ao meu escombro?
É suficiente sufocante para ambos atarem metáforas de memória? Interstício dessa virulência. Esta incúria, e esta virulência e a incúria, incúria. Essa. Deste cheiro a memória.
Como isto avança, ou recua, não avança. Mantém-se imperturbável. A extinguir a etimologia da vida.
Alguma coisa como o apurar e o imperturbável nisso.
Reverberação particular alguma coisa como não nada, um nada endemoninhado.
Como eu só pelo tactear abrindo sonhos nas minhas próprias fezes. Como eu evitando angustiar só, muito, porque não é fácil enterrar tudo. Como vejo a entrada e ao fundo o vazio da brandura.
Um ver com sangue caudoloso. Que entreolhar.
Como me horrorizo com o aflorar do trágico nada pela refinaria da brandura-morte.
Se a pele do absurdo não me falha…Melhor…Se tivesse pele para sequer falhar.
Apenas uma fulgurante imagem, em massa. Não é possivel.
Não é por querer, reconheço, não consta que a pele-embuço me perseguisse em aguçada agulha
Mas isto de nos abeirarmos a um indolente espelho lotófago condenou-nos a vegetar na obscuridade.
Pressinto um sublinhar nauseabundo a quimioterapia sentindo-a dos intestinos à cabeça.
Cravo no silêncio percuciente o que lhe vai na alma, um não empedrar o que se é.
Tal como eu. Um reservar ser perfeito. Tal como a mim. Um cuidar ser algo mais do que um espelho sem propósito Mais hálito putrefacto, uma mão encapelada quando se espreita nas bocas escancaradas e nada vê, apenas o iriado Negro-sufoco que acirra o que lhe vai na alma.
Um ir mais longe cortei as cauterizadas pálpebras que não parecia ter fim quando nasci.
Pós 15 anos, esconso cedo uma cicatriz sem fundo imensa.
Com mal tempo para me espantar cedi sem bramido contra aquele que tenta curvar os meus cães para a vala.
O árido medo reptilíneo voltou a humanizar a morte.
Onde desafectado sem clemência enfiada nos terminais do útero materno originou-se uma excrecência,
Chegou-me de faetonte um cancro como Imi.
Com morosidade desatá-lo à acorrentada vida coser a esperança gutural ao corpo
E alçar uma ponte, alça, alçar ainda…Entre o Coro dos Peregrinos e o céu da margem do meu coração.
Ufano medo!
No silêncio sem me fazer ouvir.
em hebraico
Im – Im(a), mãe
Imi – minha mãe