Homenagem a Henri Cartier-Bresson
“Comparar-me ao Mestre seria tão paradoxal como comparar o Sol à luz duma vela.
Por outro lado quando adquiri os exemplares de “Images à la Sauvette” e dos “Européens” tomei a decisão de seguir o mesmo caminho.
Para lá da beleza de todas as fotografias incluídas em “Images à la Sauvette”, cinco houve que me tocaram de forma pessoal e particular.
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Para lá do génio fotográfico que foi o seu, é inegável que Henri Cartier-Bresson foi um incomparável fotojornalista. Embora Peter Galassi, actual director do departamento fotográfico do Museum of Modern Art de Nova Iorque, tenha escrito um livro intitulado “Henri Cartier-Bresson – the early work” onde Galassi tece as loas do primeiro período do fotógrafo em que a componente surrealista tomava o passo sobre qualquer outra consideração, não é menos verdade que com a criação da agência Magnum em que o mundo foi distribuído entre os seu fundadores, Henri Cartier-Bresson se tornou, à medida dos seus colegas Robert Capa, David Seymour e George Rodger um fotojornalista ímpar. Não é pois de admirar que o tenha escolhido como Mestre e, na medida das minhas possibilidades, tenha tentado seguir o mesmo caminho que ele, entre todos, desbravou.
Essa decisão não define nada mais do que uma influência; um caminho que eu desejava calcorrear, à minha maneira, sob a influência de Henri Cartier-Bresson. Mas essa influência nunca atingiu uma qualquer forma de identificação. Se algumas fotografias desta exposição mostram claramente essa influência só posso dizer que, desde sempre, toda a gente influenciou toda a gente, e como dizia um amigo antigo é a imitar os homens que se aprende a ser homem.
Sempre entendi que os postulados de Cartier-Bresson, uma inefável conjunção entre a geometria do mundo e a pesquisa daquilo que ele chamava “o instante decisivo”, vinham dum modo de ver que se aproximava do génio e em relação ao qual, não poderia nunca haver meças. Mas influência houve e se, hoje ainda, posso aduzir uma certa intuição e algum rigor na composição, é a ele que o devo.
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Mas nesses anos não havia escolas de fotografia e como o escreveu o meu amigo fotógrafo Carlos Afonso Dias “durante esses anos, quem quisesse fazer vida com a fotografia ou ia para o Terreiro do Paço tirar retratos “à la minute” aos magalas e suas conversadas ou se fazia a trouxa e emigrava”.
A aprendizagem da fotografia nesses anos era coisa de autodidactas. Fazia-se pouco a pouco, a descobrir novos caminhos ou selvas impenetráveis.
Mas um problema houve que me cerceou os ânimos. Cedo dei conta que nem toda a gente aceitava de bom grado, quaisquer que fossem as minhas boas intenções, ser fotografado pelo primeiro “à la minute” que lhes saia ao caminho. A minha estatura, o meu atavio e a minha curiosidade eram, as mais das vezes, motivo de desconfiança e até de receio. E nunca encontrei solução para esse problema.
É verdade que as pessoas que trabalham com as mãos, operários, agricultores, mondadeiras e crianças são mais fáceis de fotografar do que a burguesia (classe à qual também pertenço), que entende ter um direito venal sobre a sua imagem e não tolera que alguém possa ganhar a vida à custa das imagens onde ela figura.
Pouco a pouco essa pulsão de fotografar o mundo foi esmaecendo e diluindo, até que, sem nunca desistir completamente de fotografar, confinei-me a retratar, a cores que era mais bonito, os aniversários dos meus filhos, o primeiro dia de escola, as férias escolares e outras cerimónias de igual jaez.
Há portanto duas fases no meu percurso fotográfico: a primeira, claramente influenciada por Henri Cartier-Bresson, um interregno de uma quinzena de anos, e a primeira exposição pública que fiz com a provecta idade de 57 anos, na “Galeria Ether – Vale Tudo Menos Tirar Olhos”, convidado pelo seu criador António Sena.
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Soube do seu falecimento em França, na Provence. Jornais Rádios e Televisão telefonaram de Lisboa pedindo-me que dissesse algumas palavras sobre o seu desaparecimento. A bruteza do choque foi enorme; de algum modo senti-me um pouco órfão.
Recordei a carta que lhe escrevi poucos anos antes e que não teve resposta, salvo o envio dum livro com uma simpática dedicatória dele. Recordei também a inauguração dum exposição de fotografias da sua mulher Martine Franck, a quem falei da profunda influência que o seu marido tivera sobre mim. Respondeu-me que ele estava junto ao passeio e sugeriu-me que o fosse ver. Saí e dirigi-me a ele, disse-lhe ao que vinha, ao que ele respondeu, “Monsieur vous faites erreur, je ne suis pas Henri Cartier-Bresson” e desapareceu.
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Soube pelos jornais que Cartier-Bresson tinha falecido em l’Isle sur la Sorgue e fora sepultado no cemitério de Montjustin. A minha mulher e eu fomos visitar a sua sepultura como última homenagem ao homem que tinha desencadeado em mim as ânsias que acompanham todos os fotógrafos. Estávamos a sessenta quilómetros desse cemitério e lá fomos em romagem. Fotografei a sua campa e a minha mulher fotografou o meu recolhimento. A sepultura que fotografei de Cartier-Bresson estava coberta de flores. No seu topo havia um vaso com uma oliveira ali plantada. Por detrás estava, verde-escuro, um cipreste alto e majestoso.
Fiz setenta e nove anos nesse dia.”
Gérard Castello-Lopes, Novembro 2004
Texto publicado na íntegra no Catálogo “Homenagem a Henri Cartier-Bresson” editado pela Galeria Fernando Santos aquando da exposição.