Os desenhos feitos «assim»
Os desenhos não têm nenhum «assim» de serem feitos. Quem poderá acreditar que há um «assim» de os fazer?
Não é a esta ausência de um «assim» que devemos a ansiedade que envolve o acto de desenhar? Mas há um «assim» que se gosta de pensar ter sido o seu. Mas será que o foi? Em quantas, de tantas as vezes, a palavra diverge do pincel?
O primeiro gesto divide-se entre esboçar no ar o súbito impulso rumo à abstracção da forma, e pegar no papel.
Pegue-se no papel.
Preferem-se os papéis de algodão. São mais porosos, com uma superfície a um primeiro toque áspera, mas de uma aspereza semelhante à de muitas peles: uma aspereza permeável. Uma aspereza de superfície que desfaz o traço do carvão num seu desperdício de pó negro, mas que lhe absorve a poeira. Uma aspereza que parece contrariar o fluir dos líquidos que se venham a derramar sobre si, mas que os absorve e instantaneamente os faz parte de si: circulação interna a fazer do desenho «superfície», em vez de «na superfície».
E o súbito impulso que leva à marca, à primeira marca, o que o faz? A dianteira da mão? Esse desequilíbrio manual?
A primeira marca que se atreve a inscrever na página é já tão definitiva quanto ainda provisória. É definitiva porque tem o poder de uma data, inscreve a irreversível diferença. Mas provisória porque toda ela é só procura de encontro, nada do que de «visível» a fez mover a faz ficar. É preciso aguardar o «invisível», uma subtil alteração da respiração que a faça quedar-se antes, sempre um pouco antes do que na verdade era «ter sido». É esse o «quase» de que se fazem os desenhos.
O papel foi colocado no chão, ou agrafado na parede. Muitas vezes mudará de lugar. Há marcas que exigem a verticalidade da superfície, há outras que implicam outras orientações. A energia e a firmeza de um traço, ou o seu modo preciso de assentar na superfície e a «acentuar», ditam diferentes colocações da página. Por outro lado, é o próprio facto de o papel se encontrar caído no chão, ou agrafado na parede, que acaba por reclamar de modo diferente, e levar a uma diversidade no marcar. Cada lugar traz o seu enxurro, e é desses aluviões que são feitas as qualidades destes desenhos.
Agora, com que marcar? Com que instrumento, com que material?
De entre todos os materiais prefere-se o carvão vegetal, o pastel seco, a cinza e a tinta de óleo.
No carvão gosta-se do seu lado volúvel, o modo como denota no seu comportamento aquilo com que se articula. Gosta-se do modo como se consome ao traçar, como se desperdiça em poeira e do que essa poeira traz para o traço: umas vezes a tornar-lhe ambígua a firmeza, outras a maximizar-lhe a força. A possibilidade da aplicação de camada sobre camada, próxima da pintura, dá-lhe uma «demora» que o torna apetecível.
O pastel seco só se usa de cor preta. Só preto, e por causa do carvão. O pastel seco tem uma intensidade regular e um «peso» que, em confronto com o carvão vegetal, parecem artificiais. É por causa dessa oposição que é usado. E é também porque, quando inscrito sobre papel húmido, o seu traço se aproxima da pincelada da pintura. Isso permite ainda jogar com a surpresa que é desenhar primeiro só com água, quase invisível, e só depois friccionar o pastel sobre a página, para que nas zonas humedecidas o traço se transforme em pincelada negra.
No óleo gosta-se de tudo: do cheiro, da viscosidade, do brilho, e de como o óleo se entranha nas unhas e na pele.
Depois há a demora, indissociável do óleo. A demora da sua dissolução, a da sua secagem, e a demora em que subjuga o olhar. Nunca o óleo nos dá a cor no «instantâneo». Mas nenhuma cor é «instantânea», a cor é uma progressiva sedimentação e uma insinuante impregnação. E o óleo oferece esse tempo. O óleo é o «tempo» da cor, a pintura.
Mas também há que o subverter, fazê-lo incorporar as migalhas de pão da improvisada borracha com que sistematicamente se corrigiu a muita incerteza do traçar, e assim, fazê-lo uma coisa moldada por dentro – porque o miolo de pão endurece mais velozmente por comparação com a solidificação do fluído de cor. Ou misturá-lo com cinza, não só temperando a cor com a memória do fogo e acertar-lhe o calor, como, transformando-o de viscoso fluído em húmido granulado, fazer o colorir assemelhar-se a varrer um chão e maliciosamente deixar que a «sujidade» se deposite nos sulcos da superfície.
Foi «assim» que estes desenhos foram feitos, ou pelo menos é «assim» que se diz.
Apesar de se desenhar sempre o «Mesmo», cada desenho é sempre um novo modo de actuar. Com cada marca realizada, e com cada modo de o fazer, tenta-se aumentar o que nunca é. A cada traço que se faz só há mais universo.
João Jacinto, 2015