Uma das afirmações basilares de Maria José Oliveira é a de que “todos os materiais são bons; é preciso é não ter medo”. Argila, tela crua, cartão, papel, pão, plástico, ferro ou borracha, materiais e objectos vários, em todos celebra a respectiva essência e coloca algo de si. A sua cuidada e indiscriminada capacidade de experienciar torna-a capaz de evocar inventários de relações improváveis e aparentemente indignas de nota, mas o que faz é comunicado através dos objectos. Os seus actos são silenciosos. Interessada no transporte mágico das alquimias, na transformação dos objectos e dos seus usos, na composição e decomposição dos materiais, nas passagens rituais da memória, cruza no campo da estética e sob o testemunho de frágeis impressões, infinitas famílias e universos.
O universo instrumental desta artista é composto por materiais heteróclitos, não definidos pela aparente especificidade de um qualquer projecto, mas antes reaproveitados do seu entorno, aceitando os seus desvios e acidentes, com o intuito de renovar e enriquecer a matéria que parece já ter cumprido a respectiva função. As suas construções simbólicas, tal como “a coluna vertebral ou o princípio do mundo” (2020) que aqui é mostrada, são compostas por aglomerados de objectos que não se reduzem ao seu conceito abstracto nem sequer a si mesmos. Tal como na definição de bricoleur de Lévi-Strauss, a artista “interroga todos estes objectos heteróclitos que constituem o seu tesouro, a fim de compreender o que cada um deles poderia significar” e “contribuindo para definir um conjunto a ser realizado, que no final será diferente do conjunto instrumental apenas pela disposição interna das partes”. O seu significado reside numa história precedente, mas difere desta através das adaptações que sofreu para servir outros usos.
À medida que o tempo passa, as suas obras tomam diferentes composições e nomes, e os elementos que as compõem vão sofrendo ajustes e reorganizações, entre os elementos da experiência e herança pessoal de Maria José Oliveira e aqueles encontrados abandonados na rua ou trazidos por amigos, mas sempre com a carga de se relacionarem com algumas memórias ou afetos. As suas construções são simultaneamente fragmentos e universos que se transformam pela via da viagem: transportam alguma parte da sua vida, sendo sempre metáforas. É a história própria dos acidentes e a leitura da história como a construção de enredos que resultam de acasos que permite criar construções simbólicas a partir de objectos concretos.
O bricoleur começa por recolher e conservar elementos díspares “em função do princípio de que isso pode vir a servir”. A sua regra do jogo, como explica Claude Lévi-Strauss em “O Pensamento Selvagem”, é arranjar-se com os “meios-limites”, pois o seu projecto “é o resultado contingente de todas as oportunidades que se apresentam para renovar e enriquecer o estoque ou para mantê-lo com os resíduos de construção e destruição anteriores”. O bricoleur tem a capacidade de cruzar universos, combinar imagens e conceitos, tal como na reflexão mítica ou na criação de signos: jogar com a capacidade de representar algo diferente de si próprio, a meio caminho entre significado e significante, entre imagem e conceito.
Os seus ritos oferecem-se como valor principal, obrigando a desconstruir a percepção instalada dos materiais para aceder à constituição das memórias sensíveis. Para lá do presente visível, os ritos não são menos reais que os objectos. Por isso Maria José Oliveira se interessa por objectos semelhantes que transportam diferentes cargas, como as tampas e pegas das cerâmicas de Cabinda, povo em que as panelas assumem especiais formas (e significados) para diferentes pessoas, não sendo usual a partilha das mesmas por pessoas com diferentes histórias de vida. Todas as pegas e as tampas têm o mesmo uso, mas tal como os alimentos confecionados, transportam as marcas e vivências do seu operador. Os objectos ou materiais cuja valência tem um determinado fim, são chamados para mediar outros significados. Todos aqueles que presenteiam a artista com “tesouros” – que mais ninguém sabe como reactivar – reconhecem, em ambas partes, uma outra possibilidade de sobrevivência. Esse diálogo produz uma reorganização da estrutura dos objectos e atribui-lhes uma força equivalente à dos objectos-rituais.
Expõe-se agora na Galeria Fernando Santos (Porto) uma mostra selecionada de obras que marcam o percurso artístico de Maria José Oliveira. A imagem do convite desta exposição, um saco perfurado que acompanha a artista há 50 anos, transporta de forma simbólica, os seus universos em viagem.
Paula Parente Pinto