A noção de fracasso ocupa um lugar central no quadro de preocupações de Mariana Gomes.
A ideia de insólito também. Contudo, e ao contrário do que se poderia esperar, a preocupação da artista com o fracasso e com o insólito não provém de um receio de concretizar o primeiro nem de registar o segundo. Ela provém, mais propriamente, de um receio de os não encontrar: de se lhe escapar a mão para a harmonia das formas e para o equilíbrio da composição, de redundar na criação de uma imagem pictórica eficaz e pungente, de ficar refém do apelo háptico da tinta, da sedução inalienável do colorido, do seu efeito inebriante sobre a retina. No fundo, o que preocupa verdadeiramente Mariana Gomes é a eventualidade de fazer uma pintura certa, seja porque nela se possa reconhecer a vénia a um cânone, a um estilo ou a um gosto caucionados pela história, seja porque nela se manifeste uma cumplicidade táctica e circunstancial com um qualquer epifenómeno da contemporaneidade artística.
Compreende-se, portanto, que o tipo de independência e desafio que Mariana Gomes procura para o seu trabalho exija um esforço particular de controlo, de vigilância e mesmo de auto-sabotagem. Como se mergulhasse numa batalha entre si e o seu próprio instinto, o trabalho da artista passa, em primeiro lugar, por estabelecer um campo operativo que contrarie o mais possível a naturalidade do acto de pintar e a sua suposta valência simbólica. Por isso mesmo, ao invés de eleger uma temática estanque, de estabelecer uma técnica idiossincrática e de promover um discurso sólido e unívoco, a artista prepara o seu campo de trabalho com tudo quanto possa facilitar manobras de inflexão, diversão, contradição e choque, anulando quaisquer hipóteses de assistirmos ao estabelecimento quer de uma marca autoral estável, quer de um quadro de sentido particular. Sobre esse campo de trabalho, desejavelmente disfuncional e contraproducente, a artista destila, depois, um conjunto de elementos pictóricos não propriamente abstractos, não propriamente figurativos, que coabitam num universo referencial progressivamente mais diverso, heterogéneo e bizarro. Esquizóides, anamórficos, feéricos e truculentos, estes referentes são como personagens improváveis forçadas a interagir no espaço de um gigantesco e inexorável erro de casting. Mais espectadora do que directora de cena, Mariana Gomes assiste divertida a este encontro, premindo o botão de pausa nos momentos em que a interacção melhor revela a absurda coexistência daqueles elementos, a sua mais profunda desadequação.
O resultado deste jogo de estridências e provocação é o conjunto de retratos que aqui podemos observar. Ora isolados, ora em planos de conjunto, estes elementos transportam consigo a promessa de um espectáculo de variedades cujo tema é a própria pintura, a sua estrutura interna, o seu potencial e as expectativas que nela depositamos. O objectivo último, contudo, não é o de entreter ou alienar. É, sobretudo, o de frustrar a nossa insaciável apetência pela ilusão da imagem pictórica, de nos proteger da sua suposta grandiloquência, da sua versão confessional ou salvífica. Em troca, oferece-nos o lado cru e displicente da pintura: um renovado olhar sobre as articulações e a matéria abjecta de que é feito o seu corpo e que, como os nossos próprios corpos, é contingente e cómico, por vezes fascinante, frequentemente traumático, especialmente quando nu e visto de perto. Sem truques nem maquilhagem, esta é a face despudorada da pintura a emergir contra a doxa e o aprumo. Insólita, franca e clara, ela exulta e floresce, plenamente segura da pertinência e do resultado do seu aclamado fracasso.
Bruno Marchand, 2016