Aquilo de que não há ideia
Num pequeno comentário escrevi há tempos sobre aspectos do processo criativo artístico, referindo temas que parecem provir dum lugar exterior ao ser (do não-ser ?). Em causa o lugar da imagem: o silêncio, o vazio, o nada, os lugares de sombra e penumbra, do desconhecimento e da continua busca, o não-existir.
Maria Zambrano, no seu livro “O Homem e o Divino”, escreve sobre o nada, explica o ser na sua relação com o não-ser (A última aparição do sagrado: o nada). Não consigo parar de ler este maravilhoso texto de profunda reflexão sobre a transcendência, consciente da minha impreparação para o seu completo entendimento.
“Mas o não-ser ficou sempre referido ao ser, excepto nesses “algos” que aparecem no Parménides como exemplo daquilo “que não há ideia”: o que sobeja dos corpos vivos, os restos da matéria, tudo isso de que “não há sequer ideia”.
Continua-se a pintura nos momentos que a interrogam: a expectativa do que é desconhecido e deslumbra, o exercicio do desligar o composto, o envolvimento do olhar, a extensão do campo da visão, o prolongamento do corpo na sua fragmentação. Questionar o espaço é o que continuamente a pintura faz. Não será no sentido de “the final frontier”, a ambição dos anos sessenta, a crença na possibilidade de ir mais além, mas na constatação de que um espaço está para lá do corpo e é um lugar. A sua possibilidade depende de como este se apresenta.
A afirmação da existência de um espaço é imperativa, pelo gesto que emana do corpo, pelo objecto construido, que estabelece novas regras. A possibilidade da sua representação estabelece-se pelo simulacro ou num ambiente de vivências aparentes. O ser manifesta-se pelo não ser, e é na tensão de opostos, como luz/escuridão ou presença/ausência que se concretiza. O não ser vislumbra-se na obra de arte, como objecto que é, propondo as interrogações que permitem caminhos na afirmação do ser.
O não ser é tratado por Zambrano não como a negação do ser (e aqui se ultrapassa o sentido unívoco da realidade enunciado por Parménides) mas como a dimensão da realidade que desafia o ser a se manifestar plenamente. Convocam-se o mistério, o desconhecido e o divino, como situações que a razão humana não consegue aceder. Para Zambrano, o não ser não é algo de negativo, mas sim a ponte para a transcendência e para a busca do autêntico.
O acto de representar, no sentido mais lato, o acto de imaginar uma imagem, é fonte de provocações, que se complementam e se contradizem, estruturando o processo criativo e inserindo-o no silêncio e no nada, ou naquilo de que não há ideia, anunciando assim os caminhos que afirmam o ser.
Pedro Calapez, Março 2024