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Pedro Calapez – Olhar Indiscreto

26.09 10.04.2021
Galeria Fernando Santos
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Da solidão da obra e do olhar

“Entretanto, a obra – a obra de arte, a obra literária – não é acabada nem inacabada: ela é. O que ela nos diz é exclusivamente isso: que é – e nada mais. Fora disso, não é nada. Quem quer fazê-la exprimir algo mais, nada encontra, descobre que ela nada exprime. Aquele que vive na dependência da obra, seja para escrevê-la, seja para lê-la, pertence à solidão do que só a palavra exprime: palavra que a linguagem abriga dissimulando-a, ou faz aparecer, quando se oculta no vazio silencioso da obra.

A solidão da obra tem por primeiro limite essa ausência de exigência que jamais permite afirmá-la acabada ou inacabada. Ela é desprovida de prova, do mesmo modo que é carente de uso. Não se verifica nem se corrobora, a verdade pode apoderar-se dela, a fama esclarece-a e ilumina-a: essa existência não lhe diz respeito, essa evidência não a torna segura nem real, apenas a torna manifesta.

A obra é solitária: isso não significa que ela seja incomunicável, que lhe falte o leitor. Mas quem a lê entra nessa afirmação da solidão da obra, tal como aquele que a escreve pertence ao risco dessa solidão.” (1)

O lugar do olhar, como alternância possível do momento em que este acontece, o momento em que este se faz e aquele outro em que se olha o feito, constitui a ininterrupta alternância que determina o sequenciamento do processo criativo.

O modo como o olhar reage é variável e determina-se no interesse que o observador mantém dentro de si. A obra pode ou não despertar questões para quem a observa, mas inevitavelmente contém em si elementos, resultantes duma actuação física, que se propõem a um olhar.

Aquilo que vemos “para além” do “quadro” é impreciso, fragmentado, pois nele se colhem elementos diversos em que se ensaia a reconstrução dum espaço, dum lugar, dum momento. Procura-se o lugar entre a mão e um olhar!

Provavelmente a apreensão completa do objecto olhado nunca será conseguida, nem pelo seu próprio autor. Em boa verdade é esta inacessibilidade que confere a liberdade que o objecto artístico intrinsecamente reivindica. A realidade é dialeticamente mutante, e vivemos numa procura de liberdade imbuídos na incessante construção e desconstrução do mundo. E, como Blanchot enuncia, aquele que faz arrisca-se na solidão que emana da obra, risco esse que afecta do mesmo modo aquele que olha, o seu leitor, o seu espectador.

O olhar: indiscreto, sem reservas, intrometido. Tudo lhe e nos diz respeito, no destacar do mais ínfimo pormenor ao ilusório toque de uma cor, à subtil e enganadora transparência duma velatura.

Indiscretos seremos, pela intromissão sem maneiras e sem vergonha nas imagens que surgem no nosso caminho. Queremos conhecer e conhecermo-nos. Arrastamo-nos numa inevitável e indefinível solidão.

Pedro Calapez, Agosto 2020

(1) In “O Espaço literário”, Maurice Blanchot, Editora Rocco, 1987, tradução de Álvaro Cabral.

(Um agradecimento especial a Óscar Faria pela sua disponibilidade em facultar referências e traduções de Blanchot) 

Pedro Calapez - Olhar Indiscreto
Pedro Calapez - Olhar Indiscreto
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