Tempo interpretado
Uma pergunta: que tipo de experiência pretende, caro leitor, retirar da contemplação de uma obra de arte? Que expectativa o mantém, para além disso, a ler um texto sobre um determinado conjunto de obras de arte? Uma explicação técnica? Uma hermenêutica que alivie a suas dúvidas perante determinado objecto ou conjunto de objectos?
Assaltam-me estas dúvidas porque enquanto profissional cada vez me sinto mais distante dos textos que de alguma forma se reduzem a descrições expandidas dos meios e propósitos de um projecto artístico. Injusto para o espectador (que pode, na sua sabedoria ou inocência, estar mais perto daquilo que o artista pretende) e injusto para o artista que eventualmente não se reveja naquilo que o crítico ou escritor de circunstância tenha a dizer.
E no entanto, o que nos resta senão a interpretação? Poderia o artista escrever alguma coisa, mas também isso deslizaria para o campo da interpretação, desde logo, pelo uso de uma linguagem que não puramente visual. Pois bem, partamos desse princípio para evitar mal-entendidos. Escrevo eu, não o artista, logo esta exterioridade confere-me uma liberdade indissociável de uma escrita que quero agora mais distante do jargão da história da arte e da crítica, e mais próxima de um sentimento de espectador privilegiado, porque conhecedor da obra do Rui Calçada Bastos e porque me apetece cada vez mais distanciar-me de qualquer tipo de proficiência disciplinar.
O conjunto das obras agora apresentadas reflexiona de modo incisivo sobre uma questão que acompanha todas as divagações filosóficas e poéticas que nos ocupam ancestralmente: a passagem do tempo. A passagem do tempo nas suas tentaculares dimensões públicas e privadas. Aí, o artista movimenta-se com agilidade. Sabe que o espaço público interfere com a nossa percepção individual e no modo como interiorizamos a nossa relação com o outro. Sabe, também, como os mais privados gestos se articulam com narrativas sociais mais abrangentes, na recusa, aceitação, no compromisso ou na sua normalização. Sabe, finalmente, como a alternativa a uma narrativa unívoca se guia, fundamentalmente, através de movimentos desviantes num plano que se afirma como essencialmente poético.
Between Green and Red (2013) é uma série fotográfica que documenta a acção da natureza e os seus ciclos vitais num enquadramento urbano. As plantas trepadeiras que cobrem a face de um edifício vão mudando a sua cor e a sua exuberância vai-se despindo até um final outonal que se vê pontuado por uma presença humana vestida de vermelho. Como se esta presença encarnasse um ponto de encadeamento de um processo que sabemos que se irá repetir. O que aqui não deixa de ser curioso é o facto da temporalidade cíclica e alargada no tempo estar determinada por aspectos conjunturais que repercutem uma circularidade mais estrita e pragmática: o artista tinha de estar consciente da passagem de luz verde para a vermelha num semáforo próximo para poder fotografar àquela distância sem a presença de elementos perturbadores no plano de visão desejado. Neste estranho encontro entre a técnica e a natureza reitera-se a inevitabilidade expectável de acções, movimentos e formas que, no entanto, serão sempre diferentes e irrepetíveis. Tal como o tempo, em abstracto. Sabemos medi-lo, nunca saberemos definir a sua substância existencial a não ser nas mais intemporais especulações filosóficas.
Em Untitled de 2013 o autor documenta em registo vídeo uma banal operação associada a tarefas levadas a cabo por operários na construção de um prédio. O plano recortado vê-se dramaticamente acentuado na sua verticalidade por via da posição igualmente vertical do plasma em que esta obra se apresenta. Aqui, e ao contrário da peça anteriormente referida, a sequência de imagens em loop registam um pequeno fragmento de tempo. Não se documenta um processo, privilegia-se uma acção. Todos percebemos que é uma acção que vai determinar um fim esperado, apreendemos o antes e o depois deste trabalho, mas a indeterminação destes gestos suspendidos sublinham a performatividade do agora como referente integral da passagem do tempo. Movimento físico no interior de um tempo-movimento psicológico. A repetição como trauma, a repetição como factor decisivo na construção das sociedades capitalistas ou tardo-capitalistas se quisermos ser mais precisos.
A interrupção disruptiva no encadeamento destas duas obras em que a dimensão temporal é mais claramente perceptível materializa-se na série de imagens Untitled de 2013 e na fotografia Ghost de 2015. Na primeira discernimos braços e corpos que ensaiam uma estranha coreografia. O sentimento que destila é de entreajuda e solidariedade. Aqui Rui Calçada Bastos remete para uma questão que começa a ganhar uma espessura crescentemente significante no conjunto do seu trabalho. Como se definem os contextos de recepção das imagens? Quem determina as interpretações, mais ou menos literais, mais ou menos poéticas? Voltamos ao início, sim. E os dados ficam ainda mais baralhados se soubermos que aqui o artista boicota assertivamente as nossas expectativas ao apresentar uma série de imagens encontradas e que foram certamente criadas para uma leitura literal e puramente técnica: são imagens de exercícios de socorrismo, que pretenderiam ser o mais claras possível e iconograficamente transparentes. Descontextualizadas, não deixam agora de ser contaminadas pelo encadeamento conceptual das imagens vizinhas. Estes gestos tornam-se opacos, sedimentam gestos vividos, apreendidos ou imaginados em situações completamente distintas.
Evitar a morte. Evitar o esquecimento. Ghost é uma imagem-oxímoro. Um antimonumento à ausência como presença continuada. Aquela inscrição na parede de uma escada inexistente condensa um devir tumular. Ser para desaparecer, e no desaparecimento deixar marca. Tal como nós, que queremos ser inscrição num fluxo interminável de desaparições.
Miguel von Hafe Pérez, 2015
Nota: por decisão pessoal, o autor não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.