Escultura, diálogo, palavra, escultura
A exposição “One story is not enough” compreende uma selecção de obras da autoria de Sandra Baía que permite estabelecer vários itinerários que a artista tem percorrido na sua abordagem à relação perene da palavra com a precariedade temporária das matérias.
Um desses itinerários explora uma necessidade de confrontação com o outro, enquanto alteridade que se manifesta no espaço público provocando encontros por vezes muito subtis, mesmo quando a instalação das peças transmuta a sua escala e proporção. No exterior da galeria, as obras instituem-se como agentes disruptivos da paisagem urbana habitada ou da memória de um estado de transição entre a presença e o resíduo de qualquer coisa ausente, que resiste de forma precária nas superfícies espelhadas que trabalha. Neste aspecto, o uso sistemático de processos industriais para a realização das instalações, objectos e esculturas estriba-se num vocabulário de materiais que revela um pensamento austero, por um lado minimalista no que respeita à economia dos meios e das matérias, e por outro lado excessivo na construção espacial que estes projectam sobre o espectador, aproximando-se de um esplendor romântico e ficcional. Como exemplo, podemos referir os diálogos entre peças que, sendo aparentemente semelhantes, constroem diferentes significados no espaço. Duas esferas posicionam-se numa relação contraditória entre espaço interior e espaço exterior. Uma delas cria uma obstrução no espaço, mas como um ecrã ovóide; enquanto a outra absorve e reflecte o ambiente onde foi instalada. A experiência sensorial pode parecer semelhante na visualidade reflectora, mas a modulação do espaço e o reposicionamento do corpo que observa sofrem uma contínua transformação.
Um outro potencial diálogo, entre obras em que a inscrição da palavra é decisiva, religa a arquitectura interior da galeria com o espaço que lhe é exterior, a rua: um mupi, objecto de mobiliário urbano, encontra-se instalado na montra sem qualquer cartaz ou a superfície opaca que o caracteriza, transformando-se numa estrutura escultórica que contém uma pequena inscrição em néon com a palavra “WORLD”, desenhada como se fosse um breve apontamento, ou mesmo uma assinatura, quase ilegível. Esta obra estabelece uma ligação com uma outra, de grande escala e criada para um lugar público, o Terreiro das Missas, em Belém, Lisboa. Essa obra, “Is There a Place Before Arriving”, é a forma poética de sinalizar esse lugar anterior, como um anúncio à condição pré-existente do caminho, como metáfora da resistência que esse caminho exige, conhecendo apenas uma casa de chegada, no sentido lúdico, que é a palavra.
Uma outra escultura reforça essa duplicidade através do confronto entre quatro planos negros que se erguem, cindidos pela oposição entre o espelho negro, como objectos mágicos, e a torção que se lhe opõe, amolgada e mais orgânica, porventura sonora na sua aparente imobilidade. Todos os diálogos aqui enunciados são leituras que a artista desenvolve no interior da sua própria obra, reintegrando métodos e técnicas num outro diálogo entre a manufactura e a produção industrial.
Sandra Baía constrói aproximações ao modelo de um mapa em camada de itinerários ficcionais, como numa inscrição que sinaliza o mundo (“WORLD”) mas que não está em primeiro plano, ou desvelando afecções que nos resgatam à esfera emocional numa obra de elementos ímpares, e aparentemente simétrica, intitulada “Família”.
João Silvério
José Gabriel Flores (revisão)