Esta estranha designação, tantas vezes requerida por inúmeros artistas desde há mais de um século para acentuar a impossível titularidade daquilo que fazem — isto é, a sua irredutibilidade absoluta a qualquer forma discursiva — serve-nos agora para agrupar, sem preocupações de geração, género, modelo conceptual ou meio de expressão, alguns exemplos fortes das inúmeras forças e formas que velozmente atravessam, por vezes contraditoriamente, a arte contemporânea e os seus múltiplos sentidos, gerando constantemente novas e inesperadas questões: também ela percorre sem medo os géneros, os estilos, os media, as gerações, para reler em cada exemplo a possibilidade do seu próprio mas inapropriável sentido do actual.
Das formas grotescas de Carmen Calvo às provocações em acto de Maria José Aguiar, da lenta elaboração, vizinha da Arte Povera, de Maria José Oliveira às sofisticadas geometrias urbanas de Gerardo Burmester, das figuras complexas de Manuel Baptista às figurações enigmáticas de Álvaro Lapa, das surpreendentes paisagens de Nikias ao letrismo irónico de Alicia Eggert, da melancolia pós-modernista de Costa Pinheiro ou das convulsivas esculturas de Saint-Clair Cemin às instabilizadas “naturezas mortas” de Jorge Galindo, tudo aqui são pretextos para compreender, como se nos fotogramas de um filme entrecortado, caminhos que toma a arte na única contemporaneidade que a define.
Sendo esta mais estado de espírito do que propriamente programa estético reconhecível, e sendo este sobretudo, como já antes lhe chamei, o tempo de todas as imagens, a contemporaneidade é atravessada por impulsos múltiplos, pulsões, desejos, impressões, falhas, tentativas, erros, possibilidades e caminhos que por vezes não levam a parte alguma. Sob o seu manto espesso e vário, todavia, florescem, numa incerteza impossível de apropriar, várias raízes do futuro. Nela repousam já, como se prontas a acordar, essas sementes que, mais adiante, alguns irão reconhecer como originárias de poéticas que então serão estabilizadas, exemplos do que preparou o tempo, sinais precisos, mesmo se por agora indecifráveis, de um outro e novo sentimento do tempo.
Contemporâneos são, entre si, todos estes artistas, tendo sido todos eles habitantes de um mesmo tempo, ainda que a partir de vários lugares, coabitando nele, mesmo se muitos jamais se cruzaram alguma vez entre si: Avelino Sá e Vítor Pomar, Pedro Quintas e Ruben Rodrigo, Manuel Ocampo e João Penalva, Pedro Casqueiro e Jorge Perianes, Ray Smith e Alberto Carneiro, Cristina Massena e João Louro, Ana Vidigal e Jaume Plensa, Pedro Calapez e René Bertholo, Cabrita e Luis Gordillo, Markus Lupertz e Luísa Correia Pereira, Manuel Rosa e Sandra Baía, José Loureiro e Pedro Valdez Cardoso, Jorge Galindo e Bosco Sodí, Santiago Ydañez e Rui Sanches.
Juntos agora num imprevisto encontro — como se numa festa ocasional sugerida tão somente por todos eles terem, em algum momento, exposto a sós ou em colectivo numa galeria que leva já 30 anos de actividade — conversam animadamente entre si, desenham desejos, formas, hipóteses e percursos tantas vezes de sentido oposto, que atravessam o tempo e diferentemente o evidenciam e que, sobretudo, dialogam em inesperada mesa de amigos.
Direi, então, que a contemporaneidade é um diálogo. Um diálogo de tempos, mais do que de formas, um diálogo de vozes e de olhares, mais do que de estéticas, de interrogações mais do que de estilos, de surpresas mais do que de certezas.
Caminhamos, todos, num tempo incerto, em si mesmo incompreensível, assustados por guerras, pandemias, apocalípticos sinais de mudanças bruscas: mais ou menos conscientes delas, vemo-las no mundo, no clima, nas ideias, na afirmação de minorias que se desconheciam, na extinção de glaciares e de zonas outrora encantatórias e agora tornadas desertas, na emergência de forças políticas de sentido vago, de ideologias que parecem querer substituir o próprio real e fabricar modelos de novos totalitarismos cegos. Ou mergulhados numa torre de babel de vozes que falam sem concerto, sem rima, sem acordo. Nenhuma narrativa certa parece esclarecer-nos de um sentido, seja ele pequeno. E nunca como no nosso tempo terá sido tão sensível a disrupção entrópica, o diferendo generalizado, a entrecortada linha de sombra que parece de repente desfazer toda a luz que nos assiste. Como escreveu um dia o grande Mário Cesariny, de quem se cumprem cem anos, falta aqui uma grande razão.
Nesse horizonte incerto que nos invade os olhos, a percepção e a inteligência, os sentidos todos, talvez a arte seja o mais perfeito guia. Não porque nela se desenhe um único sentido, ou uma única direcção, bem pelo contrário, mas justamente porque, espelhando a multiplicidade e a alteridade, apesar de tudo resiste como forma afirmativa, encantatória, que nos ilumina. Deixando-nos levar por quanto nos ensina — a dissolução da forma única, da geografia fixa, da ordem estável, seja ela económica ou política, da própria identidade, do local e do estabilizado — podemos seguir um fio secreto de sentido que assinala secretamente a continuidade do humano.
Na incerteza do mundo actual, a arte tem vindo a ganhar a função de iluminar, como outrora a filosofia iluminava. Diverte, sugere, coloca hipóteses, questiona e afirma rumos, liberta-nos da normalização e do estável para que o mundo inexoravelmente tende sob a força de novas ordens, políticas, financeiras, geográficas e aponta, em vez deles outros caminhos, mais livres, ainda por percorrer cuja direcção exacta ainda desconhecemos.
Diálogo permanente e subtil, dá-nos, subtil e de uma forma que age inconscientemente, o próprio de um sentido que ainda não conseguimos adivinhar mas que, pouco a pouco, se nos vai revelando: abre-nos à infinita metamorfose do sensível.
Esse outro sentido é, por ora, sem título: correndo sob os nossos olhos, ligando-nos num tempo que já é global, ele escreve-se.
E nós com ela, secretamente, escrevemo-nos nele.
Bernardo Pinto de Almeida, 2023