Tàpies
Pintura e Escultura
Galeria Fernando Santos, Porto
11 de Março a 15 Abril 2006
AS NUVENS COMOVIDAS
São agrafados, tatuados, carimbados os traços ferozes com que Tàpies fere o papel, o rasga, o retoma, o cobre, são cicatrizes, nódoas negras, arranhões, são rasgões, rugas, estilhaços, setas, são dores, são feridas, lanhos, hematomas, são rasgados estes traços que carimbam o vazio, reflexos incessantemente retomados.
(Ou, como diria Carlos de Oliveira, são “nuvens comovidas”?)
E vem-me à lembrança o discurso de Harold Pinter ao aceitar, há semanas atrás, o Prémio Nobel da Literatura: “Quando olhamos um espelho, pensamos que é exacta a imagem à nossa frente. Mas basta movermo-nos um milímetro e a imagem altera-se. Aquilo que estamos realmente a ver é uma série infindável de reflexos.“
O desenho em Tàpies será este imparável vagabundear perante a série infindável de reflexos que recebe do mundo, que nele inscreve e sobre si se abate, reflexo reflectido e incessante: e basta um milímetro para que tudo se altere. E o desenho guarda o segredo do seu provisório gesto, terminal gesto, presente já passado, com a nova matéria que sobre ele cai, látex, lápis, tinta, cola, adesivo ou ligadura. Ou as assemblages doridas com que recorta o ar, o espaço, bronze que se ergue em silêncio, impávido crucifixo de tantas dores antigas.
Talvez por isso seja no desenho que ele mais deixa o vazio ficar sob a matéria, pairando, pisado, rodeando, oscilando, rodando, vazio amplo como o mundo, parede de caverna, leve céu onde marca os segundos de vida que passam, milímetros de mudança, pegadas, dedadas, impressões digitais do pensamento perante a infindável série de reflexos que cria e vai crescendo.
Ah, como o negro cai, como o branco fica, como a figura ( anjo que “não leva peso” ) cai por sobre a fenda, como o látex ressalta, ai como os anjos aqui sofrem “as leis reais do nosso peso”, diria ainda Carlos de Oliveira, o realista.
Não estamos, aqui, perante a “espessa matéria” de que fala Claude Simon a propósito das grandes telas, “os lentos e espessos movimentos da memória ou da imaginação, [matéria] ora cremosa, untuosa, ora granulosa, arenosa, corroída e que, para lá de qualquer re-presentação se apresenta a nós no presente.” (1). Não, estamos no seu negativo, na sua sombra: um traço que se soltou, uma seta, uma incisão, setas que se cruzam, é um abrir de olhos.
O presente dos seus desenhos é instantâneo, ao rés das coisas e do tempo, parece não vir de tão longe como as suas telas oxidadas, pesadas como barro fundido, está escandalosamente presente, sem passado nem corte, neles se recolhe, por segundos, a imanência do tempo e do seu canto efémero.
“Mesa, madeira posta
próximo dos homens”
Carlos de Oliveira, Descrição da Guerra em Guernica
Realista, Tàpies coloca-se contra a representação, apresenta, é. O seu sudário não traz consigo marcas de outro real para além de si mesmo – e, no entanto, nestas setas que se cruzam, na cruz que se situa, neste ondulado traço sobre o azul, que ânsia de futuro se abre!
Cada desenho será um voto, uma promessa, futuro tatuado neste papel, nesta real, obsessiva presença da matéria, noite transfigurada: poderão vir do fundo dos tempos os seus sinais poderosos, poderão recolher os muitos saberes, abrem-se para nós com a gravidade de um dia: prometem-nos vida sobre o saber de todos os tempos.
“Assim se movem
as nuvens comovidas
no anoitecer
dos grandes textos clássicos.
Perdem mais densidade;
ascendem na pálida aleluia
de que fulgor ainda?
e são agora
cumes de colinas rarefeitas
policopiando à pressa
a demora das outras
feita de peso e sombra.”
Carlos de Oliveira, Pastoral
“Mas às vezes o escritor tem de quebrar o espelho – porque é do outro lado do espelho que a verdade nos espera de frente.” Conclui Pinter no seu discurso.
E que são estes desenhos ao rés do gesto, tão perto do homem, tão colados ao papel, tão dentro da matéria? Não estamos aqui a quebrar o espelho, depois de tanto o olharmos, não estamos depois da parede que fizemos com toda a arte e suas imagens, não estamos feridos, magoados, exaltados, primitivos sempre, mesmo agora que o mundo volta à guerra e à sua areia?
Jorge Silva Melo, Dezembro 2006
In catálogo da exposição Tàpies, Galeria Fernando Santos
(1) Claude Simon, Les Tàpies de Tàpies, Marselha, Museu Cantini 1988