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Bosco Sodi ‘Fractais’

03.05 31.07.2014
Galeria Fernando Santos
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Bosco Sodi – Fractais 2014

Um Novo Alquimista
por Bernardo Pinto de Almeida
Julho 2013

Bosco Sodi trabalha com a matéria. Melhor: com as matérias.
São elas as terras, o pó fino do serrim obtido dos restos de madeira longamente peneirados, os pigmentos, água, colas, vernizes. Coisas. Coisas que se vão juntando e que, sob a luz forte e agregadora das cores tomam, quase sem interrupção, a via da transfiguração.
A via que as leva a deixarem de ser simples matérias e, desse modo, a converterem-se em exercícios espirituais, tais como os de Mestre Eckardt ou os de Ignacio de Loyolla, mas que não se apreendem pela leitura. São exercícios espirituais, sim, mas destinados a ser experimentados pela simples percepção, seja esta háptica ou óptica. São como que imagens fixas, mas ainda assim remotas, de uma experiência de land-art concretizada através da redescoberta de a tornar vertical.
Vistas de perto, pousadas junto ao chão, estas enormes telas evocam a terra, mas quando se mostra gretada por fendas que a atravessam como se estivesse ferida. Como os lamaçais que secaram sob o sol ou como a textura rugosa dos desertos. Ou evocam a lava que algum vulcão adormecido simplesmente tivesse deixado depositada nas suas margens. Ou mais remotamente evocam a imaginação do solo desabitado de algum planeta distante.

As cores fortes de que são feitas, os negros, os azuis, os vermelhos vivos, porém, conduzem-nos para a imaginação de outras coisas. Levam o olhar para o território mais puro, mais abstracto, de formas que a própria matéria teve muito antes de ser como a conhecemos, ou para a promessa longínqua, distante, de um seu estado futuro. Transportam-nos assim no tempo, para diante ou para trás, mas saindo do instante mais imediato a que todavia apelam, ao mesmo tempo, através da sua simples e densa presença.
São exercícios espirituais também por isto: sugerem a possibilidade de o tempo ser possível de experimentar em outras dimensões, ao mesmo tempo para trás e para diante do nosso próprio instante presente, e de o espaço também ele estar sujeito a um processo de constante transformação. A transfiguração não consiste senão nisso, que é a capacidade de conter, num mesmo espaço, o registo dos vários espaços que foram sendo e, num mesmo tempo, a memória de todos os tempos que já foram e a eventual antecipação dos que ainda serão.
É nisso que consiste afinal transfigurar, ou transmutar. Como os antigos alquimistas, senhores de um saber arcaico, este novo alquimista usa a matéria para nela condensar as possibilidades do espírito, as que se tornam capazes de nos tocar aí onde a palavra cessa, onde se faz de novo, inesperada, a experiência súbita de haver um silêncio do mundo em que este pode voltar a ser habitado não pela confusão, pelo ruído, pela vertigem dos reflexos, mas tão simplesmente por uma experiência do mais primordial.
Este trabalho apela, desse modo, para um estado de contemplação e de surpresa, um estado de espanto, que provém de um desarmar de tudo quanto nos impede de experimentar a abertura improvável a outras dimensões do espaço e do tempo.
Mas como todos os exercícios espirituais, também ele só pode tocar-nos porque antes fomos despertados e, também, porque nele se pressente, como uma sombra misteriosa, o ter sido ele mesmo tocado por outras expressões que, antes da sua, se manifestaram e que nela se continuam como mensagens de uma experiência que pertence ao mundo. Assim é que não nos surpreende se o artista nos pode falar do encantamento que lhe suscitou a sua própria experiência das cores em Rothko, das sismografias do gesto em Pollock ou Sam Francis, da descoberta sempre inebriada das matérias num estado quase puro em Tàpies ou do sentimento orgânico que aflora em Dubuffet. Como quem falasse dos santos de uma religião há muito tempo esquecida mas ainda visível em vestígios que nos assombram.

Bosco é um pintor e a sua pintura transporta a memória de outras pinturas. Mas também a experiência visual e sensível dos muros de grês dos pueblos arcaicos do interior profundo do seu México natal, ou das temperaturas do deserto que viu próximo, ou da simples contemplação do mar em turbulência. Nelas se misturam, por estranha interpenetração de imagens e de símbolos, memórias sem conflito do arcaico e do contemporâneo, emanações da luz, alucinações dos sentidos, embriagados pela experiência directa da própria natureza.
Serenos uns, violentos outros, habitados sempre por um fio de respiração que nos perturba, que sussurra, que parece murmurar um mantra que traz a luz do mar, os seus trabalhos operam em nós esse acordar lento para uma realidade tangível, mas sempre suspensa, próxima de nós mas que apenas pressentimos, quase silenciosa, nas dobras mais íntimas das nossas próprias sensações.
Este é o trabalho da arte, mais do que o da ciência: levar-nos através da ilusão para a imaginação das coisas mais verdadeiras, aquelas para que não temos ainda linguagem mas que ainda assim pressentimos, ao mesmo tempo que promove em nós o desfazer de toda a ilusão. No fim, é de novo só matéria e cor e tempo e espaço. O que se transfigurou diante dela fomos nós.

Bosco Sodi – Fractais, 2014 – Porto


Bosco Sodi (Cidade do México, 1970)
Vive e trabalha entre Nova Iorque, Barcelona, Berlim e México.
Centrando-se na exploração dos materiais, no gesto criativo e na ligação espiritual do artista com a obra, Sodi procura transcender barreiras conceptuais. 
Sodi apresenta pinturas monocromáticas de larga escala, únicas e não convencionais, que prosseguem a utilização de pigmentos puros, serrim, pasta de madeira, fibras naturais, água e cola característicos do seu trabalho.
Sodi não usa pincel, mas constrói as peças directamente no solo numa referência directa às ‘action paintings’ de Jackson Pollock. Uma vez terminados os métodos de criação controlados, estas telas passam por um processo de secagem no qual os factores externos, devidos às várias localizações de espaços de atelier, alteram a aparência dos relevos escultóricos das peças.  Uma multiplicidade de pequenas fracturas e enormes fissuras surgem à superfície criando um terreno que se assemelha a terra queimada. O carácter incontrolável da formação das fendas desempenha um papel fundamental no processo criativo de Sodi, deixando toda e qualquer interpretação a cargo do espectador.
Cada uma das pinturas de Sodi é um resumo das suas memórias e experiências colectivas, tornadas presentes num método de criação que carece da sua integral participação tanto física quanto emocional. 
“A visão estética pessoal de Sodi é conseguida através de um árduo processo físico de manipulação de materiais, mas ao mesmo tempo adicionalmente caracterizada pelo facto de estes serem inseparavelmente envolvidos nas intuições fenomenológicas criativas que os materiais são capazes de gerar e recrear. É uma equação pessoal onde experiências passadas e presentes e as suas associações geram um estado contínuo e único de unidade interna temporária.” como explica Mark Gisbourne crítico, historiador de arte e curador.
Sodi deixa as suas pinturas sem título, com a intenção de remover toda e qualquer ligação para além da existência imediata da obra funcionando como uma afirmação da fisicalidade da pintura sem referência às ideias por detrás da experiência do espectador perante a presença imediata da pintura. A obra permanece, e é uma memória do diálogo com a matéria prima que lhe deu origem. O trabalho de Sodi tende a desafiar qualquer categorização mas é influenciado por movimentos tais como a ‘arte informal’ e ‘coloristas’ como Willem de Kooning ou Mark Rothko. 
Como escreve Gisbourne, “qualquer tentativa de simplesmente reduzir a obra de Bosco Sodi a uma análise visual unicamente material é flagrantemente menosprezar a natureza criativa dos seus conteúdos.”