«A cada assalto a coisa antiga é coisa nova, não dois sopros iguais, nada que não seja um repisar sem fim e nada que retorne uma segunda vez.»[i]
Samuel Beckett, «From an abandoned work», em The complete short prose, 1929-1989 (ed. S.E. Gontarski), NY: Grove Press, 1995.
Pintura-desejo
Quanto à ideia de mimesis, e às suas interpretações enquanto imitação, reprodução, cópia ou representação, o espírito das vanguardas de início do séc. XX, de que a pintura abstracta é uma das pontas da lança subversiva ao destituir «uma simples imitação da natureza para fins práticos, ou uma imitação da natureza equivalente a uma certa interpretação, ou então estados de alma disfarçados em formas naturais»[ii], parece-nos situar-se no cerne da disputa platónica e aristotélica. Especifiquemos: de um lado da barricada, a obra de arte é uma mera imitação de segunda ordem de uma realidade que está além do mundo sensível, no domínio do pensamento e das ideias; do outro lado, a obra de arte recria a realidade quando manifesta tanto quanto transforma o mundo sensível segundo princípios formadores que conduzem a acção do ser-humano isentados de metafísica. Sem excluir o objecto dado, sem depreciar a obra de arte, uma das fundações da pintura abstracta, a sua busca, o seu devir e destino, é « (…) o próprio conteúdo da arte, a sua essência, a sua alma, sem a qual os meios de que se serve se tornam inúteis e frouxos.»[iii].
Pensemos, então, a mimesis enquanto conjugação, enquanto conciliação e colisão simultâneas, de repetição e diferença, de modo a acercarmo-nos da exposição Round and round my head de Pedro Quintas.
Antes de nos debruçarmos sobre estas noções, apoiemo-nos em Jean-Luc Nancy: apenas por meio de um erro a mimesis é pensável enquanto cópia, imitação ou reprodução conforme, enquanto conformidade servil com algo que se doa através da sensação ou da percepção; com efeito, a mimesis não está submetida a qualquer modelo, antes dita-lhe a lei da sua fecundidade, trazendo à luz algo outro, um não-dado, que não está ao alcance do dado manifestar, valorizando a imagem na qual, enfim, o podemos procurar[iv]. A pintura de Pedro Quintas dá-nos a ver, mostra-nos sem nos demonstrar, a relação dos trabalhos com a sua força formadora, o que está em jogo no seu nascer e doação ao mundo, o seu ser, ou a verdade que está em questão na diferença das composições, de cada vez singulares, únicas[v]. Podemos ver, portanto, as pinturas de Pedro Quintas enquanto pausas instáveis, documentos longevos, de um movimento, de uma procura por algo antes delas. Do ser da pintura, do seu mistério ou da sua verdade, determinada não segundo modelos ou códigos, antes o lançamento num fluxo permanente de reenvios transformadores.
Tomemos a forma circular da tela – primeiro aspecto distintivo que o olhar nota repetido em todas as obras –, e recordemos o termo tondo – aférese de rotondo – atribuído à pintura em suporte redondo popular na Itália do séc. XV. Os tondos de Pedro Quintas, formato que, na verdade, chega casualmente ao seu atelier, ignoram a norma da composição renascentista[vi], prosseguindo a exploração formal apresentada em mostras anteriores[vii]. Em Round and round my head, esta exploração é sujeita a uma estrutura de cláusulas prévias, repetidas em todas as obras. Elas, com efeito, parecem ter persistentemente ocupado a mente de Pedro Quintas, como nos sugere o título da exposição. Em composições sintetizadas, despojadas, limitadas a dois planos sobrepostos sem artifícios de perspectiva e uma estrutura de linhas paralelas, verticais e de igual largura, a dobragem do plano anterior, que desvela o seu verso e o fundo que oculta, insinua a ilusão de movimentos ausentes na imobilidade das formas. Este dinamismo viciado envolve o olhar em vacilação e incerteza, para as quais contribui a singularidade da localização da dobra, que perturba a direcção vertical das linhas presentes no fundo descoberto, no verso desocultado e na face; ou, talvez, deixando-nos sem saber, devido ao hábil manuseamento da tinta em opacidades, raspagens e diafanidades da mancha, em quais ou em quantos planos esta estrutura de linhas foi inscrita, recoberta e raspada. A mimesis destes gestos re-produz, no sentido em que produz de novo, uma e outra vez[viii].
Contemplemos as noções de repetição e diferença enquanto ângulos complementares desta aproximação à ideia de mimesis que Pedro Quintas nos dá a percorrer.
A repetição desfaz-se no seu fazer. É autónoma, descontínua do que dela emerge. A sua subjectividade é o seu ser para-si-mesma privado de um em-si-mesma. A repetição produz no espírito que a toma enquanto gesto uma diferença, algo de novo que se distribui na distinção das singularidades que por ela tomam forma. Reparemos: somos pó, ou certo composto de elementos químicos, e no entanto… A diferença habita a repetição, nasce da imutabilidade de uma indiferença de que não se separa; porém, é activada pelo excesso da imaginação, do instinto, da memória, é operada pela exuberância de uma força maior, mais ampla, excedendo a insuficiência da semelhança e abrindo o infinito. «Dir-se-ia que o fundo ascende à superfície sem deixar de ser fundo.»[ix]. A repetição do diferente consiste em causar variação, é certo; porém, consiste sobretudo, no reenvio ou retorno à força formadora, ao potencial enquanto devir e movimento com destino ao diferente, abrindo o entre, lançando distâncias entre repetições, criando diferenças.
Esta força formadora das pinturas de Pedro Quintas é a pintura em-si-mesma. A ideia de pintura enquanto o seu não-dado, o fundo que ascende e permanece fundo, e que lhes dá sentido e verdade. É menos a forma formada e mais o gesto inaugural sem fim, que é sempre repetido uma e outra vez, animado pelo desejo da forma por vir, pelo impulso pela procura da forma, que, assim, de modo a formar-se, não pode ter sido formada antes, e só nessa busca se abre, se dá na singularidade da sua abertura, da sua ascendência[x]. Inscritas no domínio do dado, o que as pinturas de Pedro Quintas nos mostram é a forma inteligível da pintura, a sua forma mais intensa e profunda, escavada na prática do gesto para encontrar, através da composição e da cor, entre a composição e a cor, o que está por trás delas, antes delas. A ideia ou pensamento que re-produz a sua contínua actualização e que subverte, que faz fracassar a cópia, a reprodução, a imitação, a representação – será este o momento para corrigirmos o termo representação por re-apresentação? Que as esgota, no sentido em que as transcende. Por outro lado, em nada estas pinturas, enquanto formas formadas, implicam paralisação; elas são pausas que nos detêm para que as diferenciemos e nelas cultivemos e sintamos o ardor da diferença. Neste sentido, podemos pensar que estão, de certo modo, incompletas, inacabadas. Pedro Quintas sente esta incompletude, supomos. Cada composição, ou estrutura de linhas e gradientes de matéria, e a cor ela-própria em cada linha, em cada plano, que se esquiva a normas de harmonia e psicologia, encerra outras camadas ensaiadas em atelier, inúmeras, num processo cumulativo de afinações sem fim em que o artista se deleita tanto quanto se angustia.
Mais do que planos, dobras, linhas, cores, em Round and round my head, o que Pedro Quintas nos mostra é o impulso, a compulsão, o desejo que a força formadora acende. Desejo de abertura, da forma por vir, da forma em formação. Prazer em desejar, no aparecer que não se conclui, em algo que não se deixa captar enquanto completude. Esta finalidade sem fim que, a cada lance, o adia enquanto o persegue. Se alguma inquietude sentíssemos na satisfação que as pinturas de Pedro Quintas nos oferecem, seria a da extinção do desejo. Este, porém, subsiste em si além da sua finalização, deixa um resto seu que o reenvia para si. Renova-se, e lança-se repetidamente.
(Ricardo Escarduça, 2023)
[i] Tradução livre do autor, com base em: i) «So in some way even olden things each time are first things, no two breaths the same, all a going over and over and all once and never more.», Samuel Beckett, «From an abandoned work», em The complete short prose, 1929-1989 (ed. S.E. Gontarski), NY: Grove Press, 1995 e ii) «À chaque assaut chose ancienne est chose neuve, pas deux souffles pareils, rien qui ne soit ressassement sans fin et rien qui une seconde fois revienne», Samuel Beckett, «D’un ouvrage abandonné», em Les têtes-mortes, Paris: Les Éditions de Minuit, 1967..
[ii] Wassily Kandinski, Do espiritual na arte (trad. Maria Helena de Freitas), Lisboa: Publicações D. Quixote, 1987, p.22.
[iii] Ibidem, p.32
[iv] Jean-Luc Nancy, O prazer no desenho (trad. Jorge Leandro Rosa), Lisboa: Sistema Solar, 2022, p.26, 60-63.
[v] Ibidem, p. 26, 60-64
[vi] Composição sustentada em linhas de força centrípetas ou centrígufas, privilegiando a centralidade da figuração de temática religiosa e o simbolismo do círculo, o eterno retorno, a perfeição, a totalidade; para uma investigação mais profunda do tondo, consultar, entre outras fontes, William Zimmer, «The tondo», Art Journal, 50-1, NY: College Art Association, 1991, p. 60-63, consultável em https://www.jstor.org/stable/777088.
[vii] nomeadamente, Dobra, na Galeria Rui Freire, e Vinco, na Galeria Belo-Galsterer
Ibidem, p. 26, 60-64 [iv].
[viii] Ibidem, p.26
[ix] as ideias expostas constam de Gilles Deleuze, Diferença e repetição (trads. Luiz Orlandi, Roberto Machado), Lisboa: Relógio d’Água Editores, 2000, p. 81-82, 141-149. [ii].
[x] Ibidem, p.26, 1-7